Entenda o que significa moeda comum e o que está por trás da proposta anunciada por Brasil e Argentina

Lula e o presidente argentino Alberto Fernández. Ricardo Stuckert

A proposta de criação de uma moeda comum entre Argentina e Brasil causou certa turbulência no debate econômico ao longo dos últimos dias. O assunto ganhou centralidade na discussão pública após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se reunir com o presidente argentino Alberto Fernández em visita ao país vizinho nesta semana.

Durante o encontro, os líderes anunciaram a intenção de adotar uma mesma divisa em transações comerciais, o que gerou dúvidas sobre como o sistema funcionaria e confusão sobre o significado de moeda comum e suas diferenças em relação a uma moeda única.

Para entender o que está sendo discutido entre Argentina e Brasil, veja as respostas para algumas das principais dúvidas levantadas após o anúncio.

O QUE É MODA COMUM?
É basicamente quando dois ou mais países escolhem usar uma mesma referência monetária em suas negociações comerciais. A moeda comum funciona como uma referência para trocas financeiras, não como uma divisa circulante, como é o caso do real e do peso.

Este é o modelo que está sendo estudado por Argentina e Brasil hoje. Neste sistema, as importações, exportações e demais negociações entre as autoridades financeiras são feitas com base no valor da moeda comum.

A população e os turistas, por sua vez, continuam usando a moeda local de cada país.

Atualmente, o dólar norte-americano é a referência usada na maioria das operações financeiras e comerciais. Com isso, o poder econômico de cada nação acaba sendo influenciado por questões como disponibilidade de dólar no país (reservas) e flutuações da cotação em relação à moeda local.

O QUE É MOEDA ÚNICA?
Diferentemente da moeda comum, a moeda única substitui as unidades monetárias nacionais nos países que participam do sistema. Funciona, portanto, como uma divisa corrente também, não apenas uma referência para exportações e importações.

O exemplo mais conhecido é o euro, usado por 20 dos 27 países-membros da União Europeia. Além de valer para negociações entre os países, o euro é a moeda oficial de cada nação, usada pela população e por turistas em compras do dia a dia.

Mais complexa de ser implementada, a união monetária precisa de instituições políticas compartilhadas (um mesmo Banco Central, por exemplo). É um processo que leva décadas e exige que os países tenham certa semelhança em suas estruturas econômicas e fiscais.

Para analistas, a criação de uma moeda única na América do Sul, a exemplo do que acontece na União Europeia, é uma possibilidade irreal.

O QUE É A MOEDA QUE BRASIL E ARGENTINA NEGOCIAM?
A proposta do governo brasileiro é criar uma moeda comum para transações entre os dois países. O principal objetivo é não precisar recorrer ao dólar e, assim, facilitar a integração regional.

Inicialmente, a ideia é batizar a moeda de ”sur” (sul), que seria digital e serviria apenas para as negociações comerciais e financeiras. Ou seja, a divisa não substituiria o real e o peso. Argentina e Brasil seguiriam com suas moedas normalmente.

Detalhes da proposta, prazos para implementação e outras informações ainda não foram divulgadas. Por enquanto, o que há é um acordo entre os dois governos para começar estudos técnicos.

No entanto, alguns pontos sobre a moeda comum haviam sido apresentados pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e por seu secretário executivo, Gabriel Galípolo, em artigo publicado na Folha de S.Paulo em abril de 2022 (antes das eleições presidenciais).

Segundo o texto, a moeda seria emitida por um Banco Central Sul-Americano, com uma capitalização inicial feita pelos países-membros, proporcional às suas respectivas participações no comércio regional.

De acordo com Haddad e Galípolo, a integração monetária na região seria capaz de inserir uma nova dinâmica à consolidação do bloco econômico, ao ”oferecer aos países as vantagens do acesso e gestão compartilhada de uma moeda com maior liquidez”.

A MOEDA COMUM ENTRE BRASIL E ARGENTINA PODE SER REALIDADE?
Oficialmente, os estudos técnicos acordados entre os dois países vão apontar para a viabilidade ou não de uma moeda comum. Contudo, especialistas indicam alguns desafios. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o economista e estudioso das relações internacionais Otaviano Canuto menciona o apego dos argentinos ao dólar, destacando que essa peculiaridade é apenas uma das muitas dificuldades que podem envolver a integração financeira entre Brasil e Argentina.

Segundo ele, os brasileiros até aceitam pagamentos em peso, mas os argentinos só querem dólar. Os bancos centrais, ele diz, teriam de coibir essa preferência, o que pode não ser trivial.

Além disso, Canuto frisa que moedas precisam de lastro, algo ainda incerto na proposta de Argentina e Brasil. A diferença de estrutura econômica dos países, da inflação e das políticas fiscais também precisam ser consideradas antes que a moeda comum se torne realidade

OUTROS PAÍSES DO MERCOSUL PARTICIPAM DAS NEGOCIAÇÕES?

Por enquanto, a proposta de acordo para criação de moeda comum envolve apenas Argentina e Brasil. No entanto, em declaração oficial, Lula e Fernandez admitiram ”a intenção de criar, no longo prazo, uma moeda de circulação sulamericana, com vistas a potencializar o comércio e a integração produtiva regional e aumentar a resiliência a choques internacionais”.

O ministro da Economia argentino, Sergio Massa, ainda afirmou que o projeto de moeda comum pode levar outros países da região a estudarem a possibilidade de um avanço no mercado que facilite o intercâmbio e o comércio.

No começo deste ano, o presidente do Chile, Gabriel Boric, disse achar ”interessante” a proposta de criar uma moeda comum que fortaleça o vínculo comercial entre os países da região. Ele ponderou, contudo, que ”os processos são de longo prazo”.

QUAL A DIFERENÇA ENTRE A MOEDA QUE ESTÁ SENDO NEGOCIADA E O EURO?
A principal diferença é que o sur não envolve a substituição das moedas nacionais, como aconteceu com o euro. Há também diferenças de objetivo e de abrangência. A proposta da moeda comum entre Argentina e Brasil é facilitar transações bilaterais, hoje prejudicada pela dependência do dólar, moeda que a Argentina não tem tantas reservas.

Inclusive, para evitar confusões com o euro e com a ideia de moeda única, há previsão de que o termo usado para se referir ao sur seja ”unidade de conta”.

O REAL PODE ACABAR COM A CRIAÇÃO DE UMA MOEDA COMUM SULAMERICANA?
Não. A criação do sur não envolve a extinção das moedas nacionais. Peso e real continuariam sendo usados normalmente. A moeda comum tampouco seria uma “divisa paralela” para Brasil e Argentina.

Na última segunda (23), o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Gabriel Galípolo, ressaltou que a ideia nada tem a ver com uma substituição das divisas circulantes em cada país.

QUAIS AS VANTAGENS E DESVANTAGENS DE UMA MOEDA COMUM? E DE UMA MOEDA ÚNICA?
A moeda comum facilita as transações comerciais entre os países, ao retirar a necessidade de converter os valores para o dólar. Reservas de moeda estrangeira e flutuações da cotação em relação à moeda local também passam a influenciar menos nas exportações e importações entre os países parceiros.

Antecipar desvantagens é complexo considerando que o modelo não está desenhado. No entanto, é de se esperar que um novo sistema imponha custos de implementação, adaptação e formação profissional aos países.

No caso da moeda única, como o euro, um dos pontos positivos é a facilidade em trocar moeda entre os países que participam do sistema. Pessoas e empresas ganham com a simplificação de transferências e pagamentos além das fronteiras.

A integração dos mercados financeiros também pode ajudar os países a ganharem mais eficiência, assim como garantir maior estabilidade de preços e credibilidade.

Em relação às desvantagens, a principal é a perda de autonomia em alguns temas. Ao fazer a integração monetária, os países abrem mão de tomar algumas decisões de política monetária individualmente, como a possibilidade de definir a própria taxa de juros.

A escolha do sistema fiscal também precisa estar em concordância com os demais países. Taxas de câmbio, políticas econômicas e estratégias de endividamento devem estar alinhadas, como forma de evitar que alguns países assumam o risco de outros.

A ausência de concatenação fiscal, por exemplo, é considerada uma das razões para a crise do euro da década passada.

PAULO GUEDES REALMENTE DEFENDEU UMA MOEDA ÚNICA PARA O MERCOSUL?
Sim. Em agosto de 2021, Paulo Guedes, então ministro da Economia de Jair Bolsonaro (PL), afirmou que uma moeda única para o Mercosul possibilitaria uma integração maior e uma área de livre comércio. Segundo ele disse, a união monetária poderia ser uma das “cinco ou seis moedas relevantes no mundo”.

Antes disso, em 2008, em artigo publicado pela revista ”Época”, ele já havia defendido a criação, para toda a América Latina, do que chamaria de “peso real”. Guedes argumentava que a empreitada deflagraria um ciclo de reformas tributária, trabalhista e previdenciária, com efeitos positivos para todo o continente.

Em 2019, Jair Bolsonaro (PL) também comentou publicamente sobre a ideia de implementar a moeda única entre Brasil e Argentina. “Houve um primeiro passo para o sonho de uma moeda única. Como aconteceu com o euro lá atrás, pode acontecer o peso real aqui”, disse o então presidente.

Haddad fez questão de frisar que o plano atual não tem relação com a proposta defendida pelo governo anterior.

COMO UM PAÍS MUDA SUA MOEDA?
Em termos legais, é preciso aprovar uma lei instituindo a mudança de moeda. O Brasil, por exemplo, trocou de moeda oito vezes antes de chegar ao real —quase todas por causa da desvalorização e desmoralização da divisa anterior.

O processo costuma ser gradual, já que envolve emissão de novas cédulas e definições sobre conversão de valores da divisa antiga para a nova. No caso de uma moeda única, a adoção pode ser ainda mais longa, num prazo de décadas.

O caso europeu é um exemplo. A confirmação da união monetária pelo Conselho Europeu aconteceu em 1988. Na época, um comitê ficou responsável por estudar e propor um plano para a unificação da moeda, o que foi feito em três etapas ao longo da década de 1990.

O Tratado da União Europeia, aprovado em 1991 determinou o que seria necessário para instituir a moeda única e estabeleceu a cidadania europeia, que permite a livre circulação e residência entre os cidadãos europeus de países da UE.

Entre 1999 e 2002, a moeda começou a ser usada para pagamentos eletrônicos. Foi só em 2002 que o euro efetivamente entrou em circulação. *Bahia Notícias