Após revolta de eslovacos contra Sputnik derrubar premiê, Europa se divide sobre vacina russa

Quando o primeiro-ministro da Eslováquia deu as boas-vindas a uma aeronave militar transportando 200 mil doses da vacina russa Sputnik V, em março, posou com orgulho para fotos em frente a caixotes cheios com o que ele esperava ser a salvação de seu país.

Na época, a Eslováquia tinha a maior taxa de mortalidade por covid-19 per capita do mundo, e a chegada da vacina russa ofereceu um raro lampejo de esperança. Para a Rússia, ela também ofereceu grandes benefícios: um novo mercado pequeno, mas simbolicamente importante, para seu produto na União Europeia, que até agora se recusou a registrar a vacina e instou os Estados-membros a suspenderem os pedidos até que a aprovação seja concedida.

Mas o esforço do líder eslovaco, Igor Matovic, logo saiu pela culatra, custando-lhe seu cargo e quase derrubando todo o governo — apenas três meses depois de ter adotado uma nova estratégia de segurança baseada no apoio inequívoco à OTAN e na cautela em relação à Rússia.

O governo fortemente pró-ocidental da Eslováquia, dividido entre seu compromisso de cumprir as regras europeias e o desespero por uma saída para a crise de saúde, ficou em crise por semanas.

Ainda não está claro se a Sputnik V, a primeira vacina registrada do mundo, é de fato uma grande descoberta médica, como anunciado pelo presidente russo Vladimir Putin no verão passado (hemisfério norte), mas o imunizante já provou ser notavelmente eficaz em espalhar desordem e divisão na Europa.

Na França, o presidente Emmanuel Macron conversou com Putin recentemente sobre possíveis encomendas da Sputnik, embora seu próprio ministro das Relações Exteriores tenha ridicularizado o imunizante como uma “ferramenta de propaganda”. O chanceler austríaco, Sebastian Kurz, furioso com a demora dos reguladores europeus para aprovar a Sputnik, entrou em confronto com a chanceler alemã, Angela Merkel, sobre o programa de vacinação do bloco, que até agora envolve apenas vacinas ocidentais.

Mas a Eslováquia fornece o exemplo mais concreto de como a diplomacia da vacina da Rússia teve efeitos colaterais que podem ser altamente tóxicos.

A decisão de Matovic, então primeiro-ministro eslovaco, de encomendar dois milhões de doses da Sputnik V colocou o país em desacordo com a União Europeia e levou um dos governos mais vigorosos e pró-Ocidente da Europa Oriental à beira do colapso quando parceiros menores em uma coalização governamental turbulenta, indignada com a importação da Sputnik, desertaram.

Em vez de aplausos, Matovic enfrentou uma revolta de seus próprios ministros, que o acusaram de fechar um acordo com a Rússia pelas costas, rompendo com o bloco europeu e sucumbindo ao que seu ministro das Relações Exteriores, Ivan Korcok, descreveu como uma russa “ferramenta de guerra híbrida” que “lança dúvidas sobre o trabalho com a União Europeia”.

“Achei que as pessoas ficariam gratas por eu ter trazido a Sputnik para a Eslováquia”, disse Matovic em uma entrevista recente. “Em vez disso, tivemos uma crise política e me tornei um inimigo do povo.”

O ceticismo sobre as intenções da Rússia com sua vacina é profundo nas antigas terras comunistas da Europa Central e Oriental.

A primeira-ministra da Lituânia, Ingrida Simonyte, disse em um tweet em fevereiro que Putin ofereceu a Sputnik V ao mundo como uma “arma para dividir e governar”. E a Polônia disse que está considerando comprar vacinas chinesas, apesar de preocupações semelhantes sobre ela, mas definitivamente não cogita encomendar a Sputnik V.

Uma pesquisa recente do grupo de pesquisa Globsec descobriu que, entre aqueles que desejam ser vacinados, apenas 1% dos poloneses e romenos e 2% dos lituanos escolheriam a Sputnik em vez das marcas americanas e europeias. Mesmo na Hungria, o único membro da União Europeia a começar a inocular seus cidadãos com o produto da Rússia, apenas 4% desejam a Sputnik V.

Mas na Eslováquia, cerca de 15% dos que desejam ser vacinados expressaram preferência pela vacina russa, oferecendo a Moscou a oportunidade de escapar da quarentena imposta por profundas suspeitas em outros lugares.

Que a Rússia tinha como alvo a Eslováquia para alargar a estreita passagem para a Europa, era evidente muito antes de Matovic decidir encomendar a vacina.

Peter Koles, diretor do Instituto Eslovaco de Política de Segurança, que rastreia a desinformação russa, disse que isso ficou claro pela mudança da mensagem transmitida por uma infinidade de meios de comunicação antiestablishment na Eslováquia, que refletem rotineiramente a visão da Rússia sobre o mundo e são céticos em relação ao governo pró-Ocidente do próprio país.

Durante a maior parte do ano passado, antes mesmo de alguém produzir uma vacina, disse ele, esses meios de comunicação protestaram contra a vacinação, promovendo teorias da conspiração selvagens sobre planos de injetar nanochips em pessoas e criar mutantes.

“De repente, quando a Sputnik foi anunciada por Putin, a narrativa mudou”, disse Koles. Embora ainda cética em relação às vacinas ocidentais, a mídia pró-Rússia passou de denunciar todas as vacinas para elogiar a Sputnik V como a salvadora da Eslováquia.

Andrej Danko, ex-presidente do Parlamento eslovaco que é conhecido por suas opiniões favoráveis ​​à Rússia, postou um vídeo no Facebook em janeiro dizendo que estava pronto para ajudar a negociar um acordo com Moscou para a entrega da Sputnik.

Seu discurso apelou aos sentimentos geralmente amigáveis ​​à Rússia de muitos eslovacos comuns, particularmente aqueles de tendência anti-establishment.

Martin Smatana, um ex-funcionário do Ministério da Saúde em Bratislava, disse que ficou surpreso com a quantidade de amigos que queriam a vacina russa e disseram: “Dane-se o sistema, use a Sputnik”.

Matovic, primeiro-ministro na época do apelo de Danko, disse estar bem ciente de que a vacina russa não havia sido autorizada para uso na Europa, mas decidiu que “a única regra em uma pandemia é saúde e vida”.

Ele disse que teve a ideia de encomendar a Sputnik depois que a vizinha Hungria a comprou. Ele disse que contatou o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, que o ajudou a entrar em contato com a Rússia, que estava ansiosa para fechar um acordo.

Quando Matovic levou a ideia de importar a Sputnik para seu gabinete em fevereiro, ele foi instruído a esperar até que a Agência Europeia de Medicamentos desse luz verde.

Ele fez pressão por uma via independente, decidindo que enquanto o governo como um todo tinha que seguir as regras europeias, seu ministro da saúde, que desde então renunciou, tinha o direito de ordenar que a Sputnik atendesse a uma emergência de saúde.

Martin Klus, secretário de Estado do Ministério das Relações Exteriores, disse que soube da entrega apenas algumas horas antes de ela chegar. “A Sputnik é uma vacina que salva vidas, mas o problema é: como chegou à Eslováquia?”, disse em uma entrevista.

O alvoroço após a chegada da Sputnik foi rápido e furioso. Para manter seu frágil governo de coalizão à tona, Matovic concordou em 30 de março em deixar o cargo de líder e negociar uma vaga com seu ministro das finanças, um rebaixamento humilhante.

A Rússia, disse Klus, pode não ter pretendido derrubar o governo, mas, depois de anos tentando quebrar a unidade europeia sobre as sanções impostas após a anexação da Crimeia em 2014, “colapsar o governo seria uma história de muito sucesso para eles”.

Em um relatório divulgado na semana passada, o serviço de relações exteriores da União Europeia disse que o esforço da Rússia para promover a Sputnik no exterior tinha como objetivo “semear a desconfiança” no órgão regulador de medicamentos da Europa e alimentar divisões.

Em resposta, a agência de investimento estatal russa que lidera a campanha de exportação da Sputnik lamentou que a vacina, que é aclamada como uma “vacina para toda a humanidade”, tenha sido vítima de “infelizes ataques diários de informação”. Na última sexta-feira, 30, depois que o Brasil levantou preocupações sobre a Sputnik, reclamando de dados inadequados, o desenvolvedor da vacina em Moscou, o Instituto Gamaleya, emitiu uma declaração furiosa reclamando que “forças antiéticas continuamente atacam a vacina Sputnik V por razões competitivas e políticas”.

Os argumentos hostis contra a vacina chegaram ao auge na Eslováquia em abril, quando a agência reguladora de medicamentos do país alegou que Matovic havia se apaixonado por uma isca russa. A agência disse que as doses da vacina enviadas para a Eslováquia a um custo de cerca de US$ 2 milhões diferem das doses que tiveram avaliação favorável em um artigo publicado em fevereiro na The Lancet, uma respeitada publicação científica.

A argumentação eslovaca, denunciada por Moscou como “sabotagem”, lançou dúvidas sobre o principal argumento de venda da Sputnik: uma taxa de eficácia comprovada de mais de 90% contra a covid-19. A Lancet deu à vacina 91,6% de eficácia em fevereiro, e cientistas russos desde então alegaram uma taxa de 97,6% no “mundo real”.

Mas a principal questão com a Sputnik nunca foi se ela funciona – a maioria dos especialistas acredita que sim -, mas o repetido fracasso da Rússia em seguir o procedimento e fornecer todos os dados necessários aos reguladores estrangeiros para avaliar a segurança do imunizante. O órgão regulador da Eslováquia fez sua declaração condenatória não porque havia descoberto problemas específicos na Sputnik, mas “devido à falta de dados do fabricante, inconsistências nas formas farmacêuticas e incapacidade de comparar os lotes usados ​​em diferentes estudos e países.”

As 200 mil doses que a Rússia entregou em março ainda não foram usadas e continuam armazenadas em uma empresa farmacêutica no leste da Eslováquia. Mas Matovic disse que a Rússia já devolveu o dinheiro pago por elas.

Pavol Babos, um analista político da Bratislava, disse que Matovic “nunca foi pró-Rússia”, mas “muito ingênuo”. Desesperado por uma maneira de desacelerar a pandemia e sua própria queda de popularidade, o primeiro-ministro, acrescentou Babos, “caiu em uma armadilha preparada pela propaganda russa”.

Mas Matovic zombou das acusações de que Moscou o havia enganado para promover sua própria agenda geopolítica. Os russos, disse ele, “queriam ajudar, mas em vez de agradecê-los, dissemos: ‘Vocês são estúpidos e estão enganando as pessoas em todo o mundo ’”.

O maior culpado, disse Matovic, foi o Instituto Estadual de Controle de Drogas, que afirmou que os lotes da Sputnik V que a Rússia enviou à Eslováquia “não tinham as mesmas características e propriedades” da versão V revisada pelo The Lancet. Isso, disse ele, “foi uma declaração política extremamente incorreta”.

Zuzana Batova, diretora do instituto, que recebeu ameaças de morte de defensores agressivos do Sputnik, não quis ser entrevistada, dizendo que não queria jogar lenha na fogueira.

A chefe do Centro de Pesquisa Biomédica, que realizou uma série de 14 testes na Eslováquia com a vacina russa, disse que não tinha dúvidas que a Sputnik V funcionava, mas estava preocupada com a falta de transparência da Rússia.

Embora os potenciais efeitos colaterais das vacinas AstraZeneca e Johnson & Johnson tenham sido documentados em detalhes publicamente, a chefe do centro, Silvia Pastorekova, disse: ”Não sabemos nada sobre os efeitos colaterais da Sputnik”.

A vacina russa, disse ela, passou em todos os testes de sua equipe, mas não conseguiu obter a aprovação do regulador estadual porque mais de três quartos dos documentos exigidos para atender às normas europeias não foram apresentados ou estavam incompletos.

”Somos parte da família europeia e devemos aceitar as regras da família”, disse.

*Estadão