Sapato novo: Por Karoline

Karoline-Vital

Uma das coisas mais incômodas é calçado mal ajustado. Pode ser sapato, sandália, tênis. O modelo não importa. Se estiver apertado, faz calos, fere, incha o pé, dói até sugar a última gota de bom humor. Se estiver folgado, andamos inseguros, com medo de tropeçar e cair.

Já passei maus bocados pra ficar mais “apresentável”. Quando eu era pequena, minha mãe impunha que eu tinha que usar o tal sapatinho envernizado para ir aos aniversários dos meus coleguinhas. Além de apertar meus dedos, o solado era muito liso. Tomei várias quedas durante as brincadeiras, pois não conseguia ficar assistindo a meninada se esbaldando. A única coisa legal dele é que dava para escorregar no chão encerado para a festinha.

O tempo passou e, como Raul Seixas cantou em Sapato 36, comecei a escolher o que eu calçaria. Aboli os sapatos e as sandálias sociais. Adotei de vez os tênis e havaianas. Liberdade para meus dedinhos! Porém, jamais deixei de ser incomodada pelos calçados. Principalmente quando novos. Tudo bem que meu dedão sempre em riste atrapalha um pouco. Mas por mais que experimente na loja, ande de um lado para o outro, pule, olhe no espelho, os primeiros usos são sofríveis. O calçado demora um tempo pra tomar o formato do pé, ficar anatomicamente perfeito.

É engraçado que, mesmo o calçado apertando quando novo, eu ando cheia de cuidados. Se for branco, então, qualquer sujeirinha tem que ser limpa de imediato, nem que seja com a ponta do dedo melada em cuspe. Cada passo machuca e lembra-nos da novidade em nossos pés. Pouco importa. Desfilo exibindo minha nova aquisição e sentindo-me mais poderosa. Mas confesso que, às vezes bate uma saudade do tênis velhinho, que acolhia meus pés com perfeição, apesar da aparência esfarrapada.

Essa sensação de sapato novo se aplica a qualquer inovação que acontece em minha vida. Muitas vezes, quando me sinto estagnada em alguma etapa, fico com a impressão que estou usando um tênis velho. Mesmo com a minha zona de conforto tranqüila, a aparência surrada e a insegurança em dar um passo a mais e o troço descolar me prendem na mesmice. Aí, até avançar para fase do “bode” é um pulo.

Durante a fase deprimente, fico torcendo para ter condições de adquirir o meu tênis novo. Sonho com as aventuras que poderei viver com um calçado mais apresentável. Tenho certeza absoluta de que o tênis novo elevará minha autoestima. Aí, o tempo passa, as oportunidades aparecem e consigo, finalmente, alcançar meu objeto de desejo.

Adoro escolher tênis novos, olhar as vitrines, testar os modelos, sentir o cheiro da borracha, ouvir o solado guinchar no piso, fazer todo o ritual de escolha. É uma maravilha! A animação é enorme, renova o fôlego para jornadas inéditas. A alegria me faz esquecer o sofrimento que enfrentarei na fase de transição do antigo para o novo.

É duro dizer adeus ao tênis velhinho. O solado gasto me mostra o quanto eu andei. Mesmo ameaçando descolar a qualquer momento, ele protegeu meus pés e me conduziu com segurança. Examino o tênis várias vezes, acaricio suas cicatrizes de guerra e digo adeus com um suspiro longo.

Karoline Vital é jornalista

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