Damares não foi a única mulher a ser acolhida em situação de violência no universo pentecostal. Milhões de Damares que nunca foram ouvidas pelo Estado e nem consideradas protagonistas em um projeto de país progressista. O drama delas nunca foi a escolha entre a democracia liberal e o socialismo de mercado. Elas nunca tiveram escolha que não fosse a igreja evangélica.
A Ministra Damares Alves conta com altos índices de aprovação na sociedade brasileira. Engana -se fortemente quem pensa que essa aprovação é restrita ao universo neopentecostal – em dezembro de 2019, Damares contava com o apoio de 29% da população que vota no PT, por exemplo. A principal razão desse fenômeno do conservadorismo bolsonarista é conhecida, mas tem sido historicamente negligenciada pelos dirigentes homens da esquerda brasileira.
Depois da eleição de Bolsonaro, Damares Alves deu várias entrevistas na impresa contando sobre as violências que sofreu na infância: ela foi estuprada dos 6 aos 12 anos por dois pastores que ficavam hospedados com frequência na casa da família. Segundo a ministra, ela tentou contar sobre os estupros pra várias pessoas, mas ninguém prestou atenção no que ela dizia, muito menos no comportamento que ela passou a desenvolver com o trauma.
Nessas entrevistas, Damares relatou que “superou” seus traumas causados pelos estupros quando subiu em uma goiabeira e encontrou Jesus. Por mais anedótico que esse episódio seja pra muita gente, Damares faz questão de recontá-lo com frequência para reafirmar que ela foi acolhida e protegida pela igreja evangélica. É aí que reside um dos maiores entraves pra esquerda: o Estado era alternativa pra ela?
Damares não foi a única mulher a ser acolhida em situação de violência
no universo pentecostal. Justamente por isso, seu discurso sobre
abstinência sexual tem tido grande aderência em amplos setores da
sociedade brasileira. A principal razão é a resposta altamente
conservadora e violenta via Estado que ela propõe pra combater a
epidemia de violência doméstica na infância e contra a mulher.
Além disso, dessexualizar e deserotizar a sociedade brasileira à sua imagem e semelhança: Damares é uma mulher que faz questão de não ter nenhum traço de sensualidade, de erotismo, de encanto. Uma mulher dura, rígida, monocromática – como milhares de outras mulheres que, consciente ou inconscientemente, têm a mesma postura rígida e reprimida como proteção a qualquer tipo de violência. Vocês já pensaram que o descaso com a saúde, corpo e alma, pode ser um escudo contra homens que se sentem no direito de abusar e violentar mulheres de várias maneiras?!
Obviamente que tenho profundas críticas à Ministra Damares e ao bolsonarismo de maneira geral, mas a minha opinião não importa nada porque esse país tem milhões de Damares que nunca foram respeitadas, acolhidas e protegidas. Milhões de Damares que nunca foram ouvidas pelo Estado e nem consideradas protagonistas em um projeto de país progressista. O drama delas nunca foi a escolha entre a democracia liberal e o socialismo de mercado. Elas nunca tiveram escolha que não fosse a igreja evangélica.
E são essas mulheres, esse contigente imenso de gente largada à própria sorte, que a esquerda vai continuar ignorando e/ou chamando de fascista? Porque essas mulheres não concordam com o Bolsonaro, mas foi e ainda é no mesmo universo dele e da ministra Damares que elas e seus filhos foram e são acolhidos. Que mulher-mãe-solo não quer proteção para seus filhos? Quem há de acusá-las e condená-las quando não há alternativa?!
Tudo isso pra escrever três coisas: 1. mulheres-mães-solo (a maioria trabalhadoras domésticas precarizadíssimas) e seus filhos precisam ocupar lugar central em um projeto de Brasil em oposição ao bolsonarismo; 2. a violência na infância e contra as mulheres precisa ser tratada como epidemia e jamais como pauta identitária como tem acontecido pela ala economicista de uma esquerda machista e socialmente irresponsável; 3. não adianta as lideranças partidárias afirmarem a necessidade de diálogo com os evangélicos se parte significativa da militância se sente moralmente superior e no direito de dizer à essa população que ela não pode ter religião ou qual
religião ela deve ter. Por todas as razões acima: isso é muito violento.
O bolsonarismo, como um fenômeno de massa da extrema-direita, deslocou
todo campo político e isso tem nos obrigado a rever muita coisa. A principal delas é a relação entre religião e política na esquerda brasileira.
Escrito por Patrícia Valim, professora de História do Brasil Colonial da Universidade Federal da Bahia. Conselheira do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Perseu Abramo