Na boate do Hotel da Bahia, onde morava, em Salvador, em 1963, numa noite de sexta-feira, depois do jantar, eu ouvia o Blecaute, o negro cantor de voz calorosa, com suas canções americanas, acompanhado de uma jovem alta, esguia e bela, gaucha e também negra, bem negra, com olhos de amêndoa. Depois de cantar, veio sentar-se à minha mesa.
Era a Leila. Entrou Glauber Rocha, agitado e falando atropeladamente no filme que ia fazer, “Barravento”. Apresentei-lhe a Leila. Ainda de pé, Glauber olhou longamente para ela, chegou bem perto do rosto e gritou alto:
– Sophia Loren em negativo!
Sentou-se. A Leila ficou surpresa, assustada. Ele continuou:
– Você nunca fez cinema? Nunca a chamaram para filmar?
– Não. Sou de Porto Alegre. Eu só canto.
– Você vai fazer um teste de fotos e de fago.
Ela ficou parada, ansiosa. Falei-lhe mais do Glauber, de sua liderança em um grupo de jovens intelectuais baianos, ela sorriu aliviada:
– Claro que aceito. Sempre sonhei com isso. Quando será?
– Amanhã. Mas antes temos que resolver um problema. Seu nome. Leila é bonito, mas não é nome de atriz. Tem que ser outro.
E ficou pensando. Entrei na conversa:
– Que tal Luiza?
– Ótimo, disse Glauber. É simples e forte. Mas tem que ser duplo.
Levantou-se, foi até o bar, pediu uma água, voltou:
– Já tenho o nome: Luiza Maranhão.
Tímida, a gaucha Leila, a nova Luiza, respirou fundo:
– Também gostei muito. E você, Nery?
– Ótimo. Para manchete de jornal e capa de revista é perfeito.
E nasceu ali a deslumbrante e queridíssima atriz Luiza Maranhão. Marcamos encontro para as fotos no dia seguinte, na redação do “Jornal da Bahia”, onde Glauber era editor de Policia e eu colunista. Ela só voltou a Porto Alegre depois de filmar “Barravento”, primeiro longa de Glauber. Depois Glauber fez o clássico “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Terra em Transe” e outros. Ele era isso: um “vulcão cultural”, como o chamou em magnífico livro o João Carlos Teixeira Gomes, o primoroso poeta Joca.
A revista francesa “Cahiers du Cinema”, a bíblia dos cinéfilos, elogiou esta semana o filme “Cinema Novo”, que recebeu a “Palma de Ouro” de documentário no Festival de Cannes, na França. O documentário é de Eryk Rocha, filho de Glauber Rocha (1939-1981). A revista diz assim:
– “O Cinema Novo é o cinema do futuro: Eryk Rocha restitui a força criativa, a energia incandescente, o desejo e a paixão de um movimento que nunca deixou de ser contemporâneo”.
Como dizia Otavio Mangabeira, “baiano bom é o que brilha lá fora”.
CPC-UNE
Eram mil coisas ao mesmo tempo, naqueles tumultuados dias do governo João Goulart. Impulsionado pelo meu “Jornal da Semana”, tinha acabado de me eleger deputado. O candidato do PCB (Partido Comunista) a deputado estadual, meu amigo Aristeu Nogueira, não se elegeu. Ficou como primeiro suplente do Partido Socialista.
O PCB queria criar na Bahia o CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes) e não tinham recursos. Fui a Brasília. O perene e incansável Waldir Pires, então Consultor Geral da Republica, me encaminhou ao MEC (ministro da Educação e Cultura Julio Sambaqui). O dinheiro só poderia ir através da Inspetoria Seccional do MEC em Salvador. Era um grande baiano, ex-prefeito de Mutuípe, Julival Rebouças. Para cuidar da verba, um funcionário federal, Noenio Spinola, depois consagrado jornalista, diretor de redação do “Jornal do Brasil”..
E foi assim que, também com a lucidez e o estimulo do grande reitor da Universidade Federal da Bahia, o professor Edgard Santos, começaram a nascer esses maravilhosos tsunamis culturais baianos que foram o “Cinema Novo” e a nova “Musica Baiana”. Instalado no sub-solo da Faculdade de Direito, ali na Piedade, o CPC trouxe Gilberto Gil de São Paulo, Tom Zé de Irará, Caetano e Maria Betânia de Santo Amaro e outros de outros lugares e setores, como as artes plásticas, a musica clássica, o teatro, escritores como João Ubaldo Ribeiro, Flavio Costa, Paulo Gil Soares. Outros, como o pioneiro Gilberto Gil, já ensinavam.
Hoje, estão ai ridículos e desinformados, faturadores da Lei Rouannet combatendo a união da Educação com a Cultura, como se a principal revolução cultural brasileira deste século não tivesse nascido exatamente da junção da Educação com a Cultura no CPC do PCB. Perguntem a Ferreira Gullar, Arnaldo Jabor (Paulo Pontes e Vianinha não respondem mais).
*Por Sebastião Nery