Técnicos do TCU (Tribunal de Contas da União) veem indícios de ”potencial prejuízo ao erário” na doação de R$ 7,5 milhões da Marfrig para o programa Pátria Voluntária, liderado pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro.
Como revelou a Folha, o governo do presidente Jair Bolsonaro desviou a finalidade da verba da empresa doada especificamente para a compra de testes rápidos da Covid e repassou o recurso ao programa coordenado por Michelle.
No dia 23 de março de 2020, a Marfrig, um dos maiores frigoríficos de carne bovina do país, anunciou que doaria esse valor ao Ministério da Saúde para a compra de 100 mil testes rápidos do novo coronavírus.
Naquele momento, o Brasil enfrentava as primeiras semanas da pandemia e a falta desse material, enquanto a OMS (Organização Mundial da Saúde) orientava testar a população.
Dois meses depois, no dia 20 de maio, segundo a empresa disse por escrito à Folha, a Casa Civil da Presidência da República informou que o dinheiro seria usado ”com fim específico de aquisição e aplicação de testes de Covid-19”.
No dia 1º de julho, no entanto, com o dinheiro já transferido, o governo Bolsonaro consultou a Marfrig sobre a possibilidade de utilizar a verba não mais nos testes, mas em outras ações de combate à pandemia. Os recursos foram então parar no projeto Arrecadação Solidária, vinculado ao Pátria, de Michelle Bolsonaro.
O TCU deu início à investigação do caso no dia 18 de fevereiro deste ano. O pedido foi feito pelo subprocurador-geral do órgão, Lucas Furtado, com base na reportagem da Folha. Ao tribunal a Casa Civil afirmou seguir a legislação.
Em avaliação preliminar, técnicos do TCU afirmam que, “diante do cenário delineado nos autos” em relação ao uso dos recursos do frigorífico, “compreende-se configurada alta materialidade ao caso concreto”.
”No tocante à relevância da matéria aqui tratada, há indícios da ocorrência de potencial prejuízo ao erário, por conta do desvio de finalidade dos recursos doados pela empresa Marfrig ao governo federal, uma vez que deveriam ter sido aplicados na aquisição de 100 mil testes rápidos de Covid-19”, dizem os técnicos em relatório.
”No entanto, os recursos teriam sido desviados para aplicação em ações do programa Pátria Voluntária, conduzido pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro”, afirmam. O relatório da Secretaria de Controle Externo da Administração do Estado do TCU acrescenta ainda que ”há possibilidade de ocorrerem outras possíveis irregularidades semelhantes (alto risco)”.
”Ainda que se venha a constatar não ter havido irregularidade na alteração de finalidade dos recursos doados pela Marfrig ao governo federal, a aplicação desses recursos no âmbito do programa Pátria Voluntária haveria de ocorrer segundo critérios objetivos, técnicos e isonômicos, e não de forma a privilegiar determinadas instituições”, escrevem os técnicos no relatório.
Uma segunda reportagem da Folha revelou que o Pátria Voluntária repassou a maior parte de suas verbas, no ano passado, para instituições missionárias evangélicas aliadas à ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), sem edital de concorrência. O caso também foi citado pelos auditores.
Ao fazer o pedido de investigação, Furtado afirmou que, se Marfrig e governo federal aplicaram os recursos em ações diversas da pactuada, ”caracterizado restará o desvio de finalidade, advindo, daí, a necessidade de se proceder à apuração dos prejuízos e das responsabilidades”.
No TCU, o relator do caso é o ministro Benjamin Zymler. Ele também acompanha medidas adotadas pelo Ministério da Saúde, órgãos e entidades vinculadas ao combate à crise gerada pelo coronavírus. O tribunal enviou ofícios ao Ministério da Saúde e à Casa Civil com solicitação de informações sobre a doação, como primeiro passo da apuração.
À Saúde foram pedidos documentos sobre a destinação da doação, ”especificando os critérios de alocação dos recursos e quais as organizações beneficiadas”. À Casa Civil o tribunal pediu informações sobre o programa Pátria Voluntária. Os órgãos responderam ao TCU nos dias 30 e 29 de março.
Sob comando de Marcelo Queiroga, a Saúde afirmou que a Subsecretaria de Planejamento não encontrou a doação.
Já a servidora Carla Rubia Florencio, que representa a pasta no programa de Michelle, disse que foi designada ao cargo em 22 de junho do ano passado, ”portanto, em data posterior aos fatos narrados na reportagem, razão pela qual não dispõe de informações que possam ser trazidas aos autos”.
A Casa Civil enviou ao tribunal um documento assinado pela coordenadora Programa Nacional de Incentivo ao Voluntariado, Lilian Costa Cardoso, que afirmou que a doação ”visou atenuar os efeitos danosos da pandemia à população, e que o mesmo cumpriu rigorosamente a legislação em vigor”.
Lilian Cardoso admitiu que, em março de 2020, a Marfrig manifestou o interesse em fazer doação para a compra de testes rápidos para o Ministério da Saúde. ”Entretanto, aquele ministério não possuía instrumento legal para receber recursos do setor privado”.
Segundo a coordenadora, dois meses depois, após a criação do projeto Arrecadação Solidária, que coleta recursos para o programa de Michelle, a Marfrig quis obter informações sobre um acordo que possibilitaria o recebimento de recursos do setor privado.
”Cabe esclarecer que a empresa Marfrig foi consultada sobre a possibilidade de alocar o recurso para o atendimento às necessidades evidentes do período da pandemia, como itens de higiene, itens de proteção e alimentos. Sendo assim, a Marfrig concordou com as ações apresentadas, que se enquadravam inteiramente na proposta de doação dos recursos”, afirmou Cardoso.
De acordo com a empresa, ”comunicação oficial” da Casa Civil em maio com detalhes do programa de voluntariado informou que os valores doados deveriam ser depositados em uma conta da Fundação do Banco do Brasil, gestora dos recursos do Pátria, ”com fim específico de aquisição e aplicação de testes”.
”Dias depois, a Marfrig realizou a transferência bancária do valor proposto, de acordo com as orientações da Casa Civil”, afirmou a empresa à Folha. Em julho, segundo o frigorífico, o destino do dinheiro transferido ao governo foi alterado.
A empresa disse ter sido então consultada ”sobre a possibilidade de destinar a verba doada não para a compra de testes por parte do Ministério da Saúde, mas para outras ações de combate aos efeitos socioeconômicos da pandemia”, como auxílio a pequenos negócios de pessoas em situação de vulnerabilidade.
A Marfrig disse que concordou com a iniciativa porque a ação se enquadrava na mitigação dos danos causados pela pandemia. Agora as argumentações de Casa Civil e Saúde serão objeto de análise pelos técnicos do TCU. Ao final do processo, eles produzirão um relatório que será avaliado pelos ministros do tribunal.
*por Constança Rezende/Folhapress