Mesmo com uma remuneração que pode superar R$ 1 milhão em quatro anos, o governo federal deve enfrentar os mesmos desafios do passado para fixar profissionais do novo Mais Médicos em municípios distantes dos grandes centros do Brasil. Pobreza extrema e pouca infraestrutura desencorajam a permanência de profissionais da atenção básica especialmente em áreas remotas das regiões Norte e Nordeste, que concentram a maior parte das cidades vulneráveis.
Os problemas são críticos, entre os quais a falta de saneamento e de coleta de lixo e longas viagens de barco até uma capital ou um aeroporto. O governo classificou 102 cidades no perfil com maior dificuldade de fixação. Dessas, 78 estão na Amazônia Legal (estados do Norte, Mato Grosso e parte do Maranhão). Carauari, Eirunepé, Tonantins (AM), Chaves, Melgaço (PA) e Godofredo Viana (MA) são algumas delas.
Carauari, por exemplo, fica a 788 km de Manaus. A distância aumenta para 1.411 km via barco, em viagem que dura seis dias. Um quarto da população de 28 mil habitantes vive em situação de extrema pobreza, mais de um terço não tem água encanada e 4 a cada 10 moradores sofrem com abastecimento e esgotamento sanitário inadequados, segundo dados do Atlas Brasil e do IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) baseados no Censo.
Há outros municípios com melhor acesso à capital, como Godofredo Viana (MA), a sete horas de carro de São Luís. Embora 70% da população de 12 mil pessoas tenha água encanada, só metade conta com esgotamento adequado. Cidade de mineração, sofreu problemas como contaminação de solo e presença de substâncias tóxicas na água nos últimos anos.
Uma das áreas com os maiores benefícios oferecidos aos médicos é a microrregião de saúde do Alto Solimões, nos arredores de Tabatinga (AM), na fronteira do país com Peru e Colômbia. Das 9 cidades, 7 integram o perfil de mais difícil fixação: Amaturá, Atalaia do Norte, Benjamin Constant, Fonte Boa, Jutaí, São Paulo de Olivença e Tonantins.
A parcela da população com água encanada não passa de 67% em Fonte Boa. A extrema pobreza atinge 48% da população em São Paulo de Olivença, e 72% dos domicílios não dispõem de abastecimento de água e esgotamento adequados em Tonantins.
O novo Mais Médicos prevê um bônus de R$ 120 mil para quem permanecer por 48 meses nas cidades de mais alta vulnerabilidade. Isso equivale a 20% do total acumulado da bolsa recebida, de R$ 12.386,50 mensais –sem contar auxílios moradia e alimentação pagos pelas prefeituras, que elevam o valor para até R$ 15 mil por mês.
Caso os profissionais tenham sido graduados com ajuda do Fies (Fundo de Financiamento Estudantil), o benefício aumenta para R$ 475 mil extras ao fim do período, aumentando o ganho para mais de R$ 1 milhão. As 345 vagas oferecidas nos municípios desse perfil correspondem a 6% do total.
Historicamente, a promessa de bons rendimentos não tem atraído número suficiente de profissionais para trabalhar nessas regiões. ”Temos prefeituras pagando R$ 50 mil, R$ 100 mil, até R$ 135 mil de salário para médicos especialistas, com o município completando a diferença [em relação ao que pagam os governos estadual ou federal], e mesmo assim não conseguem preencher os postos necessários”, diz o presidente da Associação Amazonense de Municípios e prefeito de Rio Preto da Eva (AM), Anderson Souza (União Brasil).
A disparidade da oferta de profissionais na Amazônia e no restante do país diminuiu na primeira fase do Mais Médicos, na gestão Dilma Rousseff (PT), mas voltou a crescer com a desidratação do programa. Atualmente, a região registra um atraso de 15 anos, considerando a taxa proporcional por habitantes.
A situação é pior nas áreas mais carentes ou mais afastadas das capitais. Essa nova análise mostra que 35 microrregiões de saúde apresentam índices inferiores a um terço da média nacional de 1,66 médico do SUS a cada mil pessoas. Dessas áreas, 23 estão na Amazônia Legal. Segundo a Associação Amazonense de Municípios, as vagas do edital correspondem a três quartos (74%) do mínimo necessário para completar as equipes de saúde da família e atenção primária que hoje atuam sem médicos no estado.
Além disso, a presença de médicos é apenas uma das demandas, avalia a demógrafa Márcia Castro, professora da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard e colunista da Folha. Ela observa que também são necessárias condições básicas para se conseguir exercer a profissão, como insumos e medicamentos.
A falta de infraestrutura é um agravante. “Não adianta chegar e dar vermífugo. Você até vai eliminar a situação crítica, mas um ano depois as verminoses voltam, porque a qualidade da água continua ruim. E não é o Ministério da Saúde que vai colocar canos para passar água encanada e esgoto. As ações têm que ser múltiplas”, exemplifica Castro.
”Como estratégia, faz sentido priorizar a região, principalmente quando olhamos quais áreas mais perderam médicos após a extinção do programa. Há um entendimento de que elas ficaram descobertas e tudo isso que aconteceu nos últimos anos traz consequências negativas para a saúde dessas populações, como políticas de desmonte ambiental. Mas só trazer médicos não resolve”, diz a especialista.
Além de registrar muitos dos piores indicadores de saúde do país, a Amazônia abriga a maior parte da população indígena, que depende de assistência em áreas remotas. A saída de médicos cubanos do Brasil em 2018 levou a uma queda de 81% nos quadros da Secretaria Especial de Saúde Indígena. ”O Mais Médicos foi absolutamente crítico nos territórios indígenas. Foram as áreas que mais sofreram quando o programa foi descontinuado. Nesse sentido, é importante priorizar”, pondera Castro.
O representante dos prefeitos de Amazonas diz ter “saudade dos cubanos”. Para ele, estrangeiros estão mais dispostos a trabalhar nas áreas vulneráveis e distantes —a prioridade no Mais Médicos é para brasileiros, mas formados no exterior poderão ser chamados para vagas não preenchidas em último caso. Souza conta que dois médicos cubanos continuam trabalhando na cidade dele, Rio Preto da Eva, recebendo salário de R$ 10 mil mais ajudas de hospedagem e alimentação pagas pelo município.
”A maioria prefere ganhar menos e trabalhar perto de uma capital ou em um local onde ele possa pegar o carro ou um avião e ir passar o fim de semana com a família. É diferente uma cidade aonde só se chega de barco, de 6 a 13 dias de viagem, ou de 3 a 4 horas de voo com passagens caríssimas, e você vai ficar lá isolado por meses”, afirma o prefeito. Outra alternativa defendida por ele é a permanência obrigatória de alunos formados nas universidades locais por um período mínimo após a graduação. ”Vem gente de todos os estados disputar uma vaga na faculdade e depois vai embora.”
Como não é a especialidade médica mais procurada na residência, a área da saúde da família precisa ser mais valorizada e contar com um treinamento adequado, avalia Gabriela dos Santos Marques, médica da família em Santa Catarina. ”Quando falamos em um trabalho difícil, com baixa procura e alta dificuldade de fixação, médicos de fora acabam ocupando essas vagas. Seria importante reforçar a capacitação dos brasileiros”, diz Marques.
A bolsa do Mais Médicos é compatível com os rendimentos dos profissionais com menor experiência. A renda média mensal daqueles com até 30 anos, incluindo os que não atuam no SUS, foi de R$ 12.259 em 2020, segundo o mais recente levantamento da Associação Médica Brasileira em parceria com a USP. Profissionais jovens são um dos alvos preferenciais do Mais Médicos, pois, além da bolsa financeira, o programa oferece vantagens para residência, especialização e mestrado.
O novo edital do Mais Médicos abriu convocatória para 5.970 profissionais na última semana, com vagas em 1.994 municípios de todas as regiões. O número inicial era de 6.252, mas algumas prefeituras não renovaram a adesão ou optaram pelo preenchimento parcial, de acordo com o Ministério da Saúde. Segundo o governo, a intenção é chegar a um total de 28 mil profissionais até o fim do ano. Atualmente, são cerca de 14 mil, incluindo os contratos do Médicos Pelo Brasil, anunciado como substituto do Mais Médicos na gestão Bolsonaro.
Ana Bottallo/Cristiano Martins/Nicholas Pretto/Folhapress