O início do segundo mandato da presidente Dilma provocou surpresa pela guinada ortodoxa na economia, posta em prática pelo ajuste que teve boa parte de sua pauta aprovada há algumas semanas. Para compreender o motivo da guinada, que vai em direção contraria ao tipo de enfrentamento prometido pela candidata Dilma Rousseff nas eleições, é preciso conhecer o processo que resultou na correlação de forças atual, surgida da deterioração na relação entre o petismo e a burguesia nacional.
O petismo tem como objetivo de médio prazo a reforma do capitalismo brasileiro, a partir de uma perspectiva inclusiva. A burguesia nacional, hegemonizada pelo setor financeiro, busca manter o aparato institucional que lhe garante privilégios, a partir de uma perspectiva excludente. Esses dois projetos puderam em boa medida conviver harmoniosamente durante toda a década passada pelas condições econômicas favoráveis que forjaram a estratégia mediadora “lulista”, a partir da qual o governo se converteu numa espécie de grande negociador de ganhos marginais para a classe popular.
O modelo mediador busca arbitrar os interesses das classes para viabilizar a incorporação de novos elementos à engrenagem existente, esperando gradualmente superá-la através de um novo pacto social a ser possibilitado pelo acúmulo político resultante do processo de agregação. O ciclo de expansão pelo consumo e fortalecimento do mercado interno, puxado pela melhora no emprego, no salário e no crédito foi a incorporação marcante promovida por Lula, que alterou significativamente o perfil socioeconômico do país, para muito melhor.
O esgotamento do processo de agregação via consumo passou a requerer não apenas incorporações, mas mudanças na formatação da própria engrenagem. Para o petismo garantir um novo ciclo apoiado em saltos estruturais se tornou imperioso atacar o instrumental que a plutocracia nacional impôs ao Estado (especialmente a partir do papel central dos juros em nossa economia). O erro estratégico que o PT demorou a perceber foi acreditar que essa passagem da incorporação gradual para as mudanças estruturais poderia ocorrer a partir do mesmo modelo mediador da década passada.
Os efeitos da crise internacional no país a partir de 2011 logo escancararam o erro. Diante do novo cenário de desaceleração econômica a agenda da burguesia nacional passou a negar a possibilidade de negociação de ganhos marginais para a classe popular, impondo agora a recomposição de suas margens de lucro via diminuição dos custos do trabalho, ou seja, a partir do desemprego e rebaixamento dos salários.
Desde o final do governo Lula o país caminhou em sentido diferente, preservando emprego e salário, utilizando programas de investimento público e a capacidade fiscal do Estado para esse fim. Aqui a relação entre o petismo e a burguesia, que até então havia sido de desconfiança calculada (não de hostilidade), começou a ruir.
A partir de 2012 iniciou-se um enfrentamento aberto, pois Dilma, ciente dos desafios estruturais postos, além de manter a política pró-emprego ensaiou promover mudanças estratégicas que apontavam para a formatação de um novo modelo econômico. Três ações nesse sentido foram emblemáticas: a forte diminuição dos juros, que chegaram ao mínimo histórico de 7,5%; a pressão sobre os bancos para diminuição do “spread” bancário; e a ligeira desvalorização do câmbio. A sinalização foi clara: as diferenças seriam aprofundadas e as reformas desenvolvimentistas seriam pautadas, buscando disputar o desenho do capitalismo brasileiro.
O governo, porém, foi derrotado e de lá para cá promove um recuo que desaguou na decisão pela austeridade atual. Entendo que essa derrota se deu por dois fatores essenciais: a) pelo efeito desmobilizador do modelo de mediação, desenhado para encaminhar incorporações graduais sem politizar a relação do governo com sua base social e eleitoral, pondo-a a margem dos debates estratégicos sobre o país e tirando da agenda reformista a força das ruas; b) o entrelaçamento entre rentismo e setor produtivo no Brasil que torna cinzenta a distinção de agendas entre produção e especulação no país, dificultando a cisão da elite nacional em favor de um pacto produtivo por reformas de longo prazo.
Após a derrota Dilma adotou postura mais defensiva e tentou aliar a agenda do emprego com a da redução de custos do trabalho, via política de desonerações. Com a relação com a burguesia nacional já deteriorada essa tática nada conseguiu, a não ser criar uma estratégia econômica confusa que trouxe resultados ruins. O que se seguiu foi uma ofensiva decidida e articulada da elite econômica contra o PT e o governo, que avança no campo simbólico, a partir da mídia empresarial, e nos terrenos jurídico e político, cujo único momento de contenção foi a campanha eleitoral, onde o discurso de enfrentamento da agenda reformista mostrou que tem força.
É a partir desse cenário de disputa entre projetos distintos para o capitalismo brasileiro, um reformista e outro de conservação, que deve ser entendido o ajuste do “plano Levy”. Em seu inicio o governo teve que optar entre duas alternativas de risco: apresentar a agenda eleitoral de reformas fortes e inflexão histórica, produzindo uma contra ofensiva num cenário ainda de “favoritismo” do adversário, ou abraçar temporariamente parte importante da agenda adversária, ameaçando comprometer sua relação com a base social que lhe garantiu a vitória eleitoral, cujo apoio é fundamental para qualquer reação.
O atual ajuste nos mostra que Dilma escolheu o segundo caminho, que nos trará um 2015 de desemprego e diminuição da renda. Nos seus sonhos mais otimistas, a presidente tentará fazer do ajuste um recuo temporário que possibilite certa trégua para a reorganização da agenda do desenvolvimento derrotada no meio do caminho. A forte recessão que se anuncia, no entanto, que resultará dessa aposta a meu ver equivocada, ameaça a travessia de Dilma para o segundo momento que ela deseja.
As forças reformistas, portanto, perderam a primeira grande batalha do novo governo e seguem seu movimento de recuo. O PT em especial corre o risco de sofrer um esvaziamento completo de sua agenda, o que traria uma derrota politica acachapante.
Para encontrar uma saída os petistas devem eleger como prioritária a luta contra o esvaziamento da agenda política que mostrou sua força nas eleições, o que exigirá discurso e ação mais determinada no sentido de promover um giro no governo. É um erro alimentar o discurso da “bonança pós-ajuste”, lembrando o sucesso do aperto promovido por Lula em 2003. As condições políticas e econômicas são dramaticamente distintas. É urgente, num primeiro momento, a apresentação de um conjunto de ações que dialoguem com a base social petista e busquem minorar os efeitos do ajuste sobre emprego e renda.
Para conseguir estancar o movimento de recuo do projeto reformista, preparando uma transição para uma contra ofensiva a partir da sonhada frente de esquerda num futuro próximo, o PT deve abandonar desde já a estratégia do modelo mediador, ancorado no consenso negociado a portas fechadas nas tradicionais instituições políticas e no bailar de gestos ao mercado, iniciando a transição para um modelo mobilizador, que combine instituições e povo, retomando a narrativa da luta de classes, capaz de pôr sobre a mesa o programa vencedor das eleições e construir uma nova utopia para o país.
O tempo urge e a história exige coragem.
Por: Pedro Alcântara