Manoel Novaes fazia comício em Barra, à beira do São Francisco, nos estorricados sertões da Bahia. Um candidato a vereador fala ao povo, apinhado na praça da feira:
– Minha gente, quem deu a perfuratriz?
– Foi Novaes.
– O que é que a perfuratriz faz?
– Fura e tira água do rio.
– A vaca que dá leite a nossos filhos bebe o que?
– Bebe água.
– Então quem dá leite a nossos filhos?
– É Novaes.
– Então Novaes é a vaca santa do rio e do sertão.
Durante mais de meio século, Manoel Cavalcanti de Novaes, alto, dois metros, voz de trovoada, cara grande e generosa de sertanejo, olhos fortes, ensolarados, foi isso: a vaca santa, sagrada, que dava água e leite, esperança e trabalho no infinito sertão do São Francisco.
O grande homem é aquele que se faz sinônimo de sua gente, de seu chão. Manoel Novaes foi uma vida a serviço de um rio muito longo e um sertão muito seco. Deixou o umbigo e o destino nas barrancas molhadas do São Francisco e no pó amarelo do sertão.
SÃO FRANCISCO
Nesse fim de semana, a tragédia que afogou o ator da TV Globo Domingos Montagner trouxe novamente o rio São Francisco para as manchetes nacionais. E com ela o rio sinônimo da Nação, centro, sul e norte, símbolo da unidade nacional.
Novaes foi uma vida a serviço de sua gente. Pernambucano, em maio de 1933 elege-se para a Assembleia Nacional Constituinte pelo Partido Social Democrata da Bahia. Reeleito em 1934, não parou mais. Foi um dos mais perenes parlamentares do mundo, com uma dúzia de mandatos consecutivos. Fora a interrupção da ditadura de Vargas, entre 1937 e 1945, com o Congresso fechado, Novaes passou a vida na Câmara.
Novamente constituinte em 1945, conseguiu aprovar 1% da receita tributária da União, durante 20 anos, para aplicação no Vale do São Francisco. Em 1946 já presidia, na Câmara, a Comissão Permanente de Transportes e a Comissão Especial da Bacia do São Francisco. Sempre reeleito, em 1950, 54, 58, 62, 66, 70, 74, 78, 82, participou da direção do “Centro de Estudos e Defesa do Petróleo”, que a partir de 1948 comandou a luta pelo monopólio estatal do petróleo. Até 1987, quando deixou o Congresso, sua luta, sua tarefa foi a defesa do Vale do São Francisco, para que um rio tão gordo não deixasse seco um sertão tão magro.
LAVA-JATO
Houve um tempo, longo tempo, nas décadas de 50 e 60, em que Novaes não era apenas um mandato, era uma bancada. Decidia a eleição de muita gente, bancadas inteiras. Líder do PR (Partido Republicano), era o fiel de balança nas eleições para o Governo da Bahia.. Quando se aliava ao PSD-PTB, ganhavam juntos. Aliado à UDN-PTB, também ganhavam. Novaes era o “Barão do São Francisco”, o “líder do sertão e da caatinga.”
Aos 81 anos, fora do Congresso, onde viveu 47 anos, Novaes não se aposentou. Sentou-se à máquina e escreveu as “Memórias do São Francisco”, história da vida de um rio que também é história da vida de um homem. Um rio que, hoje, graças a ele e à competência do professor e cientista Eliseu Alves e sua equipe na CODEVASF e na EMBRAPA, é símbolo e prova de que a irrigação é o caminho para salvar o sertão e o Nordeste. Foi um homem-exemplo de dedicação, desprendimento, generosidade e serviço público, com austeridade e honradez de monge.
Esse homem que mobilizou, comandou, distribuiu, aplicou, durante 20 anos, uma das maiores verbas orçamentárias específicas do país e teve um peso político e eleitoral tantas vezes decisivo nos Governos da Bahia e do país, esse homem que passou a vida com o dinheiro público em suas mãos ou nas mãos daqueles que ele indicava para gerir, aplicar, esse homem chegou aos 80 anos e se afastou da vida pública pobre, honrado, incorrompido, incorruptível, fora e acima de qualquer Lava-Jato
Como os profetas, entrou e saiu da cidade do poder de mãos límpidas.