O beijo de Judas

SebastiaoNery

Juruna, o selvagem cacique xavante que até os 18 anos flechava avião voando baixo em Barra do Garças, Mato Grosso, estava comovendo o país, de gravador na mão, provando que, em Brasília, “governo de branco mente”.

Juruna ficou indignado com o representante da Funai em Mato Grosso, que o enganou, e contou a um pastor que ia matá-lo e fugir para o Paraguai. O pastor ligou para Darcy Ribeiro, que sugeriu que trouxesse Juruna urgente para o Rio. E pediu a Lysâneas Maciel e a mim para recebermos Juruna no Galeão.

Fomos e os levamos para o apartamento de Brizola, na Avenida Atlântica, em Copacabana, onde Darcy os esperava. Juruna entrou e ficou em pé, com aquele tamanhão, o cabelo tosado, calado. Mal falava português. Na mão, uma pasta aberta. Na pasta aberta um gravador.

Darcy convidou-o a sentar-se. Juruna não se sentou e ficou olhando duro para Brizola. Darcy disse a Brizola que ele não se sentava porque esperava uma ordem do dono da casa. Brizola falou, ele se sentou.

Brizola pensou em lança-lo para o Senado, mas Juruna saiu candidato a deputado federal, elegeu-se e foi tragado pela visceral corrupção política do “homem branco”.

Em Brasilia, com 12 filhos, Juruna morava no 1º andar da quadra 202 Norte, dos Deputados , e eu no 5ºandar Quase toda manhã, sempre entre as nove e as dez, Juruna chegava com um punhado de jornais, tocava a campainha, todo solene, não cumprimentava ninguém, só perguntava:

– Nerú tá?

Ia para meu escritório, jogava os jornais na mesa, trancava a porta:

– Nerú, Juruna confia em Nerú. Nerú não conta pra ninguém que Juruna não sabe ler. Jornal fala de Juruna?

Eu já tinha lido alguns, olhava rápido os outros, lia para ele, marcava o nome dele em lápis vermelho, ele rasgava o pedaço, dobrava, punha no bolso e saía sem se despedir, sem falar nada.

Na Câmara, Juruna entregava os recortes à sua assessoria, como se fosse ele que tivesse lido, dizia o discurso que queria fazer na tribuna, como queria fazer, o que queria dizer. Escreviam o discurso para ele, liam e reliam, ele ia para a tribuna, repetia tudo, e ia passando lauda por lauda e pondo fora, à direita, sobre a estante, como se estivesse lendo. Juruna ia falando mais ou menos o que estava em cada uma. É só conferir nas notas taquigráficas da Câmara. O que ele falava era mais ou menos o que estava escrito, mas não era exatamente o que estava escrito, porque Juruna não sabia ler, só escrevia o nome. Era um genial analfabeto. Esse é um segredo que guardei enquanto ele viveu. Cumpri.

Enganava 500 políticos que se consideravam muito mais sábios e espertos do que ele. Um dia, em Roma, muito tempo depois, à beira de um Brunello Di Montalcino, contei essa história ao inesquecível Ulysses Guimarães. Ele ficou besta. Riu muito:

– Que índio filho da puta. Me enganou quatro anos.

SERGIO MACHADO

Há uma semana o pais se estarrece com as delações do ex-senador do Ceará Sergio Machado à Operação Lava-Jato comandada pelo exemplar juiz Sergio Moro de Curitiba. A “delação premiada” é um recurso legal que a justiça usa para ouvir depoimentos em troca de vantagens a prisioneiros. Há em quase todos os países. Alguns cretinos dizem que ela é como uma tortura na ditadura. Quem fala isso não sabe o que é ditadura nem nunca foi torturado. A “delação premiada” é uma troca de informações que o preso dá ou não dá. A decisão é dele. Delator traiçoeiro é diferente.É um canalha.

Temos nesta semana dois exemplos para mostrar a diferença. O deputado Pedro Correia, de Pernambuco, depois de uma dezena de mandatos, contou minuciosamente à “Veja” sua atuação de presidente do PP (Partido Progressista), sobretudo as negociações com Lula Presidente.

Já o Sergio Machado ia visitar seus amigos em casa, 7 horas da manhã, com um gravador escondido e os atraia para armadilhas políticas. Fez isso com o ministro Jucá, o senador Renan e o presidente Sarney. Logo os três que garantiram seu emprego na Petrobrás durante 12 anos. Depois negociava as conversas. Com Sarney cometeu a suprema canalhice. Foi visita-lo no hospital, beijou-lhe a mão e o rosto e vendeu seus segredos.

Como Judas. O Judas do Ceará.

O GRAVADOR

Juruna tinha razão de desconfiar do homem branco. Ficamos amigos na campanha de 1982, nós dois candidatos a deputado no Rio. Íamos para o subúrbio, o interior, Brizola me dizia: – “Tu estás eleito. Fala no índio”.

Eu falava, pedia votos para ele, ficou meu amigo eterno.

Tinha birra do Bocaiuva Cunha, que gostava muito dele mas o achava engraçado, ria dele, Juruna detestava quem risse dele. Desconfiava que as notas engraçadas que o Zózimo dava sobre ele na coluna eram fornecidas por Bocaiúva. Vivia dizendo que ia bater em Bocaiúva:

Chamava o saudoso Zózimo de “Gosmo”. Um dia me perguntou:

– Nerú, “Gosmo” todo dia fala de Juruna. O que é que “Gosmo” quer?

Juruna era índio. Um homem verdadeiro. Sempre de gravador aberto.

Por Sebastião Nery