O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), disse nesta quarta-feira (7) que o Brasil se tornou um ”pária internacional” no combate à covid-19, ao votar a favor do fechamento de igrejas e templos diante o agravamento da pandemia, que já matou mais de 330 mil pessoas no País. A análise da controvérsia ocorre no Supremo Tribunal Federal (STF) após Gilmar e o ministro Kassio Nunes Marques tomarem decisões conflitantes sobre o assunto, o que levou o Estado de São Paulo a mergulhar em um cenário de insegurança jurídica. A sessão foi encerrada após a leitura do voto de Gilmar, e o julgamento prosseguirá nesta quinta-feira (8).
”O Brasil, que já foi exemplo em atividades de saúde pública, política de vacinação, eu falei do trabalho contra a Aids, realizado pelo ministro da Saúde Serra (José Serra, ex-ministro do governo FHC), hoje estamos nessa situação altamente constrangedora. Como queria o ex-chanceler Ernesto Araújo que nós nos transformássemos num pária internacional. Ele produziu essa façanha. Nos tornamos esse pária internacional no âmbito da saúde”, disse Gilmar.
O ministro criticou uma ”uma agenda política negacionista que se revela em toda a dimensão contrária à fraternidade tão ínsita ao exercício da religiosidade”. ”O pior erro na formulação das políticas públicas é a omissão, sobretudo para as ações essenciais exigidas pelo artigo 23 da Constituição Federal. É grave que, sob o manto da competência exclusiva ou privativa, premiem-se as inações do governo federal, impedindo que Estados e Municípios, no âmbito de suas respectivas competências, implementem as políticas públicas essenciais”, destacou Gilmar.
Gilmar também chamou de ”surreal” os argumentos de que o fechamento temporário de eventos coletivos em templos religiosos ”teria algum motivo anticristão”. ”É também a gravidade dos fatos que nos permite ver o quão necessário é desconfiarmos de uma espécie de bom mocismo constitucional, muito presente em intervenções judiciais aparentemente intencionadas em fazer o bom”, alfinetou o ministro, sem citar explicitamente a decisão de Kassio Nunes Marques.
Alinhados ao Palácio do Planalto, o procurador-geral da República, Augusto Aras, e o advogado-geral da União, André Mendonça, defenderam a realização de missas e cultos presencialmente. Os dois são considerados os principais nomes cotados para a vaga que será aberta no Supremo com a aposentadoria de Marco Aurélio Mello, em julho.
Viagem a Marte
Gilmar ironizou as críticas do advogado-geral da União à superlotação no transporte público brasileiro. Logo no início de seu voto, o ministro relembrou que o AGU ocupou até a semana passada o cargo de Ministro da Justiça e que tinha entre suas atribuições a responsabilidade de formular diretrizes sobre transportes no País.
Mendonça criticou as medidas restritivas a igrejas e cultos religiosos enquanto o País presencia cenas de ‘ônibus superlotados’ e viagens de avião ‘como uma lata de sardinha’. Ao abrir o julgamento, Gilmar rebateu o AGU.
”Quando Vossa Excelência fala dos problemas dos transportes no Brasil, especialmente no transporte coletivo, eu poderia ter entendido que Vossa Excelência teria vindo agora para a tribuna do Supremo de uma viagem a Marte, mas verifiquei que Vossa Excelência era Ministro da Justiça e tinha responsabilidades institucionais, inclusive de propor medidas. À União cabe legislar sobre diretrizes nacionais de transportes”, criticou Gilmar.
”Vejo, portanto, que está havendo um certo delírio neste contexto geral. É preciso que cada um de nós assuma a sua responsabilidade. Isso precisa ficar muito claro. Não tentemos enganar ninguém”, continuou o ministro.
‘Cheque em branco’
Em sua manifestação, Mendonça reconheceu que o Supremo já garantiu Estados e municípios autonomia para decretar medidas de isolamento social, mas rechaçou que o aval a governadores e prefeitos seja um ”cheque em branco”.
”O governador e o prefeito podem fazer qualquer medida, sem passar pelo Poder Legislativo local? Não existe controle? Não se tem de respeitar a proporcionalidade? Se autoriza rasgar a Constituição, prender um vendedor de água ambulante e espancá-lo no meio da rua? Até quando medidas abusivas, polícias, guardas municipais, agredindo cidadãos e trabalhadores, simplesmente por que estão trabalhando?”, questionou Mendonça. ”Por que somente as igrejas (fechadas)? Por que essa discriminação?”.
Evangélico e pastor da Igreja Presbiteriana Esperança, em Brasília, o advogado-geral da União negou que a discussão seja um ”debate entre vida e morte” e citou trechos da Bíblia para fundamentar a sua sustentação. ”Estamos tratando, isso sim, de uma perspectiva onde todo cristão se presume defender a vida incondicionalmente, onde todo cristão sabe e reconhece os perigos dessa doença terrível e onde todo cristão sabe que precisa tomar sim cuidados e cautelas diante dessa enfermidade. Não se trata de discussão política. Eu digo isso para que todos partamos do princípio de que todos nessa discussão defendemos a vida. É imprescindível essa perspectiva”, disse Mendonça, em sua primeira sustentação oral de Mendonça no STF desde que reassumiu o cargo de chefe da Advocacia-Geral da União (AGU).
”A Constituição não compactua com a discriminação das manifestações públicas de fé. Remédios excepcionalíssimos da própria Constituição não admitem essas medidas que estão sendo adotadas. Não há cristianismo sem vida comunitária, não há cristianismo sem a casa de Deus. É por isso que os verdadeiros cristãos não estão dispostos, jamais, a matar por sua fé, mas estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e culto. Que Deus nos abençoe e tenha piedade de nós”, afirmou Mendonça.
O procurador-geral da República, por sua vez, frisou o papel da fé na vida das pessoas. ”É necessário relembrar o lugar da religião num estado democrático de direito, e ter presente que o estado é laico, mas as pessoas não são. A ciência salva vidas, a fé também. Fé e razão que estão em lados opostos no combate à pandemia nestes autos, caminham lado a lado, em defesa da vida e da dignidade humana, compreendida em suas múltiplas dimensões, abrangendo a saúde física, mental e espiritual. Não há oposição entre fé e razão. Onde a ciência não explica, a fé traz a justificativa que lhe é inerente”, disse.
Por outro lado, o procurador Rodrigo Menicucci, que defende o Estado de São Paulo, defendeu o decreto do governador João Doria, que prevê o fechamento de igrejas e templos nas fases mais restritivas do plano de combate à pandemia. ”Hoje, um terço das pessoas que morrem por covid 19 morrem no território nacional. Não resta ao poder público outra alternativa”, afirmou.
Decisões conflitantes
No último sábado, 3, Nunes Marques, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro, decidiu, individualmente, pela liberação das atividades religiosas de forma presencial. A decisão atendeu a um pedido feito em junho do ano passado pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure). ”Reconheço que o momento é de cautela, ante o contexto pandêmico que vivenciamos. Ainda assim, e justamente por vivermos em momentos tão difíceis, mais se faz necessário reconhecer a essencialidade da atividade religiosa”, escreveu o ministro na decisão.
A polêmica liminar de Nunes Marques inaugurou uma corrida ao Supremo, com pedidos do partido Cidadania e do prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), contra a decisão do ministro. O mineiro chegou a ser intimado por Nunes Marques a cumprir a decisão depois de anunciar nas redes sociais que não seguiria a ordem.
Na contramão de Nunes Marques, dois dias depois, o ministro Gilmar Mendes, relator de ação protocolada pelo PSD, em março, contra o decreto do Estado de São Paulo que proibiu as reuniões religiosas durante as fases mais restritivas do plano de combate ao covid-19, negou pedidos do partido e do Conselho Nacional de Pastores do Brasil para derrubar o decreto do governo paulista.
”Em um cenário tão devastador, é patente reconhecer que as medidas de restrição à realização de cultos coletivos, por mais duras que sejam, são não apenas adequadas, mas necessárias ao objetivo maior de realização da proteção da vida e do sistema de saúde”, escreveu Gilmar na decisão.
A tendência é que o plenário do STF reafirme o entendimento de que os Estados e municípios têm autonomia para estabelecer medidas restritivas baseada em decisões anteriores de outros ministros e do plenário da Corte, em abril de 2020, que definiu que além do governo federal, os governos estaduais e municipais têm poder para determinar regras na pandemia.
Posição da PGR
Em manifestação enviada ao STF na tarde de segunda-feira, 5, após a decisão que manteve a validade do decreto do governador João Doria (PSDB-SP), o procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu que a ação de Gilmar seja redistribuída para Nunes Marques. Alinhado ao Palácio do Planalto, Aras alega que o caso deveria ficar com Nunes Marques, que é relator de uma outra ação, de temática similar, apresentada antes no tribunal.
”A verificação das datas de propositura e de distribuição, bem como a caracterização da coincidência de objetos das ações recomenda seja a ADPF 811/SP (a ação do PSD contra o governo de São Paulo) redistribuída, por prevenção/dependência, ao Ministro Nunes Marques”, escreveu Aras.
*Estadão Conteúdo