Nas palestras que faz pelo Brasil, Muniz Sodré, 72, orgulha-se mesmo quando alguém, ao fim de sua fala, diz um emocional “gosto de você”. É que o gesto exemplifica o que hoje é uma questão central para o sociólogo: desvencilhados do discurso e dos argumentos, estamos todos mais afetivos, sem medo da exposição em praça pública. Um efeito da cultura digital (de suas redes e possibilidades), ele analisa. Nascido em São Gonçalo dos Campos, região metropolitana de Feira de Santana, a 109 quilômetros de Salvador, Muniz é autor de 32 livros sobre as áreas da comunicação, educação e cultura – um dos primeiros, A comunicação do grotesco (1983), tornou-se um fenômeno editorial e um clássico da literatura sobre a mídia no Brasil, desdobrado, vinte anos depois, com O império do grotesco, no qual analisa como o mercado levou a televisão a privilegiar os temas banais. Professor da UFRJ desde 1982, nesta entrevista, Muniz fala sobre TV, o Marco Civil da Internet, lei que cria um rol de direitos e deveres com relação à rede e por isso foi batizada de Constituição da Internet, e sobre as novas formas de ver e sentir trazidas pela web.
Após três anos de debates, a Câmara finalmente aprovou o Marco Civil da Internet, que agora vai ao Senado. Como o senhor avalia o projeto?
O marco é uma tentativa do Estado de aplicar à internet todas as regulações que se dão no mundo civil histórico. A mão do Estado chegou à internet. Isso coloca um problema, porque nós só conseguimos compreender uma mídia décadas depois do seu nascimento. Só hoje temos uma visão microscópica da TV. Quando você está dentro da montanha, não é possível vê-la, esse é um princípio budista. Com a internet, estamos nessa montanha, vivendo o êxtase dela. Desconhecemos o potencial, sobretudo em termos de aproveitamento cultural. Esse marco regulador tem em vista mais a sociedade civil histórica do que a própria internet. O que o marco me diz? Que há uma ampliação do poder judicialista do Estado, que já é grande na vida civil e agora chega à internet.
O texto do marco contém alguns pontos obscuros, como o artigo 19 e seus parágrafos 3º e 4º, que permitem que juízes de juizados especiais, motivados pelo “interesse da coletividade”, determinem liminarmente a retirada de publicações de um site. Isso torna mais acessível o cerceamento a conteúdos, não?
O que chama a atenção nesse dispositivo é a regra estar presente em uma legislação específica. A rigor, a legislação vigente já trata desse procedimento. Ao detalhá-lo, o Congresso faz uma promoção ativa de ações que visam retirar conteúdo. Hoje já é possível retirar um determinado conteúdo da internet. Para isso, é necessário entrar com uma ação contra o site ou o responsável pela publicação. Ao explicar que esse tipo de medida pode ser feita por meio de ações em juizados especiais, que dispensam advogados, o marco funciona como uma cartilha. Fica pavimentado o caminho, então, para uma enxurrada de ações.
No livro Antropológica do espelho, o senhor trata de uma nova qualificação de vida, uma bios virtual. Que novas formas de saber e sentir a internet nos trouxe?
Eu acho que esse novo bios instaura relações sociais novas. O principal ponto, a meu ver, é a substituição da democracia de opiniões pela democracia de emoções. A democracia de opiniões é a democracia parlamentar tradicional, em que você exprime seus argumentos através de um conteúdo para que aí haja o debate e a conclusão. Na democracia das emoções, importa saber o que você sentiu quando eu disse algo – e o que eu senti quando você disse. Estamos mais na circulação de emoções e afetos do que de opiniões argumentativas. Aquela ideia de que haveria uma maquinização do social mostrou-se equivocada. A mídia eletrônica, sobretudo a internet, colocou em crise a lógica argumentativa e está introduzindo a lógica dos afetos.
Há, no entanto, ambientes ainda pouco permissivos a essa lógica dos afetos, como as escolas...
Vá tentar colocar essa ideia na cabeça de um educador tradicional. Se ele for forte, vai bater em você. Eles são impermeáveis. Assim como Clemenceau (o jornalista francês Georges Clemenceau) disse que a guerra é uma coisa importante demais para ser entregue aos militares, digo que a educação é uma coisa ampla, diversa e importante demais para ser entregue a educadores. O Ministério da Educação (MEC) é um rinoceronte, um paquiderme burocrático que corre solto em Brasília. Você vai falar sobre emoções com pessoas que só falam economês, como são os gestores do MEC, e elas vão chamar você de poeta. São pessoas incapazes de apreender a mudança e promover a escola ideal.
E qual seria o modelo ideal de escola?
A questão da escola não é uma questão de prédio, de verba, mas de verbo. O importante é o professor, porque a informação sem a transformação que a cultura educacional oferece é o mesmo que enfeitar um cadáver. A informação, às vezes, é só esse enfeite. Eu sei que o Google tem mais informações que eu, mas essas informações não me formam – o Google é um grande arquivo do saber, mas não é um formador. Quem forma é o professor, e ele é mais vital do que nunca na era da internet. A revolução do ensino virá com o investimento no professor primário. A questão da cultura no país não está no Ministério da Cultura (Minc) e sim no professor de ensino fundamental. Mas o Estado brasileiro abandonou o professor. A educação brasileira não tem ética de futuro, porque o que interessa aos planejadores da educação são as estatísticas.
Muniz Sodré é educador e sociólogo