No momento em que o país registra uma alta de casos e de internações por Covid-19 e que o estado de São Paulo voltou a recomendar o uso de máscaras em locais fechados, o brasileiro está perdendo o medo de ser infectado pelo coronavírus, mostra pesquisa Datafolha.
A parcela de entrevistados que se diz muito temerosa em relação ao contágio é de 37%, a menor desde abril de 2020. Na outra ponta, 29% declaram não ter medo da infecção. É o maior índice registrado desde o início da pandemia.
O auge do temor em relação à Covid ocorreu em março do ano passado, quando 55% dos entrevistados se diziam com muito medo. À época, UTIs de todo o Brasil entraram em colapso.
O levantamento do Datafolha foi realizado nos dias 25 e 26 de maio. Foram entrevistadas 2.556 pessoas, com 16 anos ou mais, em 181 municípios. A margem de erro é de dois pontos para cima ou para baixo.
Nesta terça (31), a média móvel de infecções pelo Sars-CoV-2 saltou 48%, em relação ao dado de duas semanas atrás, e chegou a 26.206 pessoas infectadas por dia. O país chega a 666.727 vidas perdidas e a 31.016.354 pessoas infectadas pelo coronavírus desde o início da pandemia.
Como reflexo da alta de casos, também houve aumento nas internações. Segundo a plataforma SP Covid-19 Info Tracker, da USP e da Unesp, a média móvel de novas hospitalizações (UTI e enfermaria) aumentou 74% no estado de São Paulo em três semanas.
O comitê científico do coronavírus do estado de São Paulo voltou a recomendar nesta terça (31) que os municípios orientem o uso de máscaras em locais fechados para prevenir o contágio da Covid. A medida não tem caráter obrigatório e não modifica a legislação vigente, que determina o uso apenas em ambientes hospitalares e no transporte coletivo.
Para a epidemiologista Ethel Maciel, professora da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo), neste momento de aceleração dos casos e que o país enfrenta dificuldades para completar os ciclos vacinais recomendados, o uso de máscaras em locais fechados deveria se tornar obrigatório por meio de decretos. “Os gestores não querem enfrentar a situação”, afirma.
O pediatra Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) e que faz parte da câmara técnica que assessora o Ministério da Saúde sobre imunizações, por sua vez, defende que, no atual momento, não é necessário obrigar o uso de máscaras.
”Do mesmo jeito que a gente relaxou as medidas, possibilitou tirar as máscaras quando estava com baixa circulação do vírus, agora, que está em alta, dá um passo para trás e orienta a usar. Obrigar exige fiscalização e não é por aí. Tem que migrar para um modelo de educação, orientação.”
De acordo com o Datafolha, o temor sobre a Covid-19 varia bastante entre as regiões. O Nordeste concentra a maior proporção de pessoas com mais medo do contágio (44%), seguido do Centro-Oeste (39%), do Sudeste (36%), do Norte (32%) e do Sul (27%).
Para Ethel Maciel, um divisor de águas importante nessa queda da percepção do risco foi a chegada das vacinas. ”Antes, as pessoas não sabiam o que podia acontecer caso se infectassem. Com a diminuição de internações e de mortes, as hospitalizações passaram a se concentrar em grupos de imunodeficientes, idosos. Talvez o medo continue entre os mais idosos e, por isso, esse grupo continue se cuidando mais.”
As pessoas com 60 anos são justamente as que mais temem a infecção pelo coronavírus, segundo o Datafolha: 44% delas dizem ter ainda muito medo da infecção, contra 30% na faixa etária entre 25 e 34 anos.
De uma forma geral, as mulheres são mais temerosas que os homens em relação à Covid (40% contra 33%). Pessoas com menor nível de escolaridade (fundamental) e com renda mensal até dois salários mínimos também são as que mais temem o coronavírus, com 44% e 41%, respectivamente.
Há um grupo minoritário de entrevistados, que variou entre 2% e 7% ao longo das últimas pesquisas, que respondeu que já pegou Covid. É preciso lembrar, porém, que o fato de já ter sido contaminado não elimina a possibilidade de ser infectado novamente.
Segundo Kfouri, a redução da percepção de risco é o grande desafio das imunizações de uma maneira geral. Ou seja, convencer as pessoas a se vacinarem quando já não temem mais infecções passíveis de prevenção. ”É um dos fatores que explica a menor adesão das crianças à vacinação contra a Covid. Ela chegou para esse grupo num momento de mais calmaria, completamente diferente do que chegou para os idosos e para os adultos.”
Análise feita pelo jornal Folha de S.Paulo com dados do Ministério da Saúde e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostra que o país registra um cenário de estagnação da vacinação contra a Covid-19 em todas as faixas etárias. Há dificuldades para completar os ciclos recomendados, com cobertura infantil estagnada, reforço baixo entre jovens e apenas 10% dos idosos com a quarta dose.
Para Kfouri, se a tendência de aumento de casos de Covid continuar, é possível que haja aumento da procura pela imunização nas próximas semanas. ”As pessoas se sentem mais ameaçadas e voltam a buscar as vacinas.”
O médico sanitarista Claudio Maierovitch, da Fiocruz Brasília, diz que, depois dos períodos assustadores vividos nos últimos dois anos, é natural que as pessoas estejam mais aliviadas. Ele alerta, porém, que há um movimento intencional para que tudo volte logo ao normal, mesmo com a pandemia ainda em curso.
”Desde o início, era isso [o que se via] por parte do presidente e de alguns outros. Agora, o movimento de quem se candidata às eleições é de mostrar que os lugares que administram estão bons, que ali tá tudo certo, pode tirar máscara, fazer festa, circular à vontade que eles foram capazes de trazer a normalidade.”
Segundo ele, ainda que os dados mostrem uma média móvel de mais de cem mortos por dia por Covid e um aumento dos casos e de internações, isso parece não causar grande impacto na maioria das pessoas porque elas não estão vivendo a experiência individual dos eventos mais graves.
”Teve uma hora que todo mundo tinha alguém da família internado com Covid. Agora todo mundo conhece alguém com Covid, mas raramente vê alguém se internar e, mais raramente ainda, morrer. Se não acontece nada com você, é porque o problema não existe. Passa a achar razoável o país ter mais de cem mortes por dia, os 10 mil, 20 mil casos novos por dia.”
De acordo com o Datafolha, a percepção de que a pandemia está sob controle se manteve em relação ao último levantamento, em março. Ao todo, 71% avaliam que ela está parcialmente controlada, e 14%, totalmente.
Os homens estão mais otimistas em relação ao controle da pandemia. Para 17% deles, a crise sanitária está totalmente controlada contra 11% das mulheres. Também se mantém o percentual daqueles que veem a situação fora de controle (14%). Em maio de 2021, esse índice era de 53%.
Para Ethel Maciel, a percepção de que a pandemia está controlada foi endossada pela revogação dos decretos que obrigavam o uso de máscaras, símbolos da pandemia. ”A mensagem que ficou para a população foi, ‘se pode tirar a máscara, é porque a pandemia acabou.”
Segundo ela, a medida deveria ter sido acompanhada de informações que alertassem a população para que, diante de nova alta de casos, o uso do item fosse retomado. ”Agora os números estão subindo, alguns estados estão com alta de positividade dos testes em mais de 40%, e os gestores estão fazendo de conta de que não está acontecendo nada.”
De acordo com Maciel, o país também não está enfrentando a Covid longa, um conjunto de sintomas que persistem após meses da infecção pelo coronavírus. ”A Covid longa pode afetar pessoas que tiveram infecções leves. É prioritário que a gente minimize a transmissão para que haja menos chances de a pessoa desenvolver Covid longa.”
O Datafolha também perguntou se as pessoas entrevistadas já tinham sido vacinadas: 96% responderam que sim, com pelo menos uma dose, 30% com duas doses e 55% com a terceira dose (primeiro reforço).
Até o dia 30 de maio, os registros no SI-PNI (Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações/Ministério da Saúde), com as estimativas populacionais do IBGE, apontam que a cobertura vacinal contra a Covid entre os brasileiros com 16 anos ou mais era de 91% com a primeira dose, 88% com o esquema primário (duas doses ou dose única da Janssen) e 53% com a terceira dose (primeiro reforço).