O ministro Luís Roberto Barroso, do STF (Supremo Tribunal Federal), afirma que a aglomeração das convenções partidárias e a fase de testes das urnas eletrônicas são os principais obstáculos à realização das eleições municipais de outubro em meio à pandemia do novo coronavírus.
Barroso assume a presidência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) a partir de 26 de maio, no lugar de Rosa Weber. O primeiro turno do pleito está marcado para 4 de outubro e o segundo, para o dia 25.
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o ministro defendeu que um possível adiamento das eleições seja por poucas semanas e se disse contrário à prorrogação do mandato de prefeitos e vereadores para depois de 1º de janeiro de 2021. A entrevista foi feita na quinta-feira (9) por videoconferência, por causa do isolamento social.
O ministro se mostrou favorável às decisões do STF impondo limites ao governo de Jair Bolsonaro na crise do coronavírus e rebateu as acusações do presidente sobre a confiabilidade das urnas eletrônicas.
As eleições municipais vão ocorrer em outubro?
A minha bola de cristal está um pouco embaçada para responder com certeza. Essa decisão não precisa ser tomada agora, mas a gente não deve fechar os olhos à realidade. Se chegarmos em junho sem um decréscimo substancial da pandemia, é possível ter que fazer esse adiamento, que não deve ser por um período mais prolongado do que o absolutamente necessário para fazerem eleições com segurança. Gostaria de trabalhar com a ideia de que não seja necessário adiar e que, se necessário, que estejamos falando de algumas semanas e nada mais do que isso.
Qual problema pode atrapalhar as eleições devido à pandemia?
Há questões políticas e operacionais. As políticas são as datas das convenções partidárias, que têm limite até 5 de agosto e envolvem aglomeração. Além do próprio início da campanha, em 15 de agosto. Portanto, se houver risco de aglomerações em agosto, temos um problema.
Além disso, o sistema de urnas eletrônicas funciona primorosamente bem, mas depende de testes de segurança ao longo do período. Temos como marco junho para fazermos os testes e correções. Já temos o número de urnas suficiente para fazermos as eleições. A despeito disso, periodicamente se substitui uma parte das urnas que vão ficando antigas. Se isso não for possível, apenas teremos que aumentar o número de eleitores por urna.
A eventual destinação do fundo eleitoral para o enfrentamento do coronavírus poderia atrapalhar as eleições?
Esse é outro debate, sobre conveniência ou não desse fundo. As instituições vão ter que se adaptar à nova realidade dessa pandemia. Se o Congresso deliberar destinar parte do fundo ao coronavírus, a consequência será ter que fazer campanhas mais baratas.
Como o senhor vê, num possível adiamento das eleições, a possibilidade de prorrogar o mandato dos atuais prefeitos?
A prorrogação de mandato deve ser evitada até o limite do possível. Se ocorrer, que seja pelo mínimo tempo possível. Sou totalmente contrário à ideia de se fazer coincidir com as eleições em 2022, por questão de respeito ao princípio democrático, pois os prefeitos e vereadores foram eleitos por quatro anos e não têm mandato popular para ir além. Acho que não mudar as regras do jogo é um valor importante a ser preservado.
O senhor é a favor do voto obrigatório, qual sua opinião a respeito?
Eu ainda acho bom o voto obrigatório. Há um conceito que eles usam nos Estados Unidos chamado ‘nudge’, que é: umas coisas na vida precisam ainda de um empurrãozinho. Embora ache que a democracia brasileira tenha evoluído bem, que nós tenhamos percorrido muitos ciclos do atraso em uma única geração, que criamos uma democracia estável, ainda sim acho que ela precisa desse empurrãozinho do voto obrigatório.
Nesse momento da vida brasileira não correria o risco da deslegitimação da política pelo baixo comparecimento do eleitorado. Portanto acho que o voto é um direito fundamental e acho que ainda deve por mais algum tempo ser uma obrigação. No mundo ideal, acho que deveria ser facultativo. Na vida brasileira desse momento, eu ainda acho que ele deve ser obrigatório para evitar as deslegitimação da política.
O senhor falou que a bola de cristal está um pouco embaçada, mas qual é seu sentimento sobre esse período de quarentena?
As minhas preocupações são institucionais e com o bem do país. Há um varejo político, um varejo econômico e um médico, em que não sou o melhor interlocutor. Estou acompanhando as notícias que vêm da OMS, do Ministério da Saúde e das associações médicas. Estou me guiando por elas e, inclusive, em isolamento social. De modo que acho que precisamos de uma agenda pensada desde agora para o pós-pandemia.
Qual sua agenda?
Selecionei seis itens: solidariedade, igualdade, competência, educação básica, ciência e tecnologia. Integridade é premissa de tudo, precede ideologias e escolhas políticas. Solidariedade significa não ser indiferente à dor alheia e ter disposição para ajudar a superá-la. Quem puder ajudar o outro, desde pagando antecipadamente serviços futuros, seja do cabeleireiro, do garçom, estou estimulando. Há uma reserva mínima de justiça que o país precisa ter. Nos desencontramos disso e a pandemia jogou luz sobre a igualdade abissal que existe.
O Brasil tem sido o país do nepotismo, do compadrio. Precisamos revalorizar o mérito e a virtude. Nós só universalizamos o ensino básico cem anos depois dos Estados Unidos. Estamos precisando de um choque de iluminismo em muitas áreas. Em toda parte do mundo pesquisa depende de apoio governamental, e olha que quem está falando isso é uma pessoa que defende a diminuição do Estado econômico brasileiro, não a diminuição do estado social.
O STF tem tomado decisões nas últimas semanas tentando impor limites ao governo quando não levar em conta a ciência. O senhor concorda?
O STF produziu até agora três linhas de decisões: liberação de recursos, liberou estados do pagamento da dívida com a União e uma decisão em favor da federação, ou seja, reconhecendo a competência de governos estaduais e municipais.
Acho que há um discurso sério e consistente pelo isolamento social vindo das autoridades sanitárias. É a valorização da ciência, que foi minha própria decisão contra a campanha [do governo], que já tinha entrado na internet, “O Brasil não pode parar”, que defendia volta ao trabalho.
Há recomendação do CNJ para que juízes evitem tomar decisão no sentido de estimular o uso da cloroquina enquanto não houver a comprovação científica devida.
Não tenho dificuldade de falar porque votei em um caso parecido, que foi a da fosfoetanolamina, em que se procurou distribuir a famosa pílula do câncer, que não tinha teste clínico nem registro na Anvisa. Evidentemente, votei contra. Quando você está lidando com a vida e a saúde de terceiros, não pode lidar com especulações, superstições.
Se a cloroquina funciona ou não, não sou a pessoa certa para dizer. Para ser sincero, acho que nem o presidente da República é a pessoa certa para dizer. Há autoridades sanitárias competentes, de modo que, se disserem que é bom, acho que tem que fazer; se disserem que é ruim, não deve fazer.
O que fazer, do ponto de vista jurídico, com quem desrespeitar as recomendações e seguir fazendo aglomerações nas ruas?
A primeira coisa é a conscientização e a segunda é a intervenção para impedir as pessoas de adotarem comportamentos de risco. Eu apostaria mesmo é na conscientização. Se pessoas não cumprirem leis espontaneamente, não há polícia nem Exército que dê conta.
Outro ponto que chamaria a atenção [é] que a imprensa voltou a ter uma centralidade muito importante na vida brasileira. A imprensa perdeu espaço para as redes sociais, para o streaming e para a circulação de notícias via rede social. Isso já era um problema porque a imprensa tem papel vital de filtro das informações. A internet se tornou um espaço, infelizmente, de fake news, que são as campanhas de desinformação, de ódio.
A imprensa tem o papel decisivo neste momento, que é ajudar a fazer o filtro do que é verdade e do que não é. A pandemia fez renascer essa vitalidade da imprensa. Está todo mundo em busca de notícia de qualidade, confiável. Acho que isso pode significar um certo renascimento da imprensa tradicional com a sua credibilidade.
Como assegurar à população que as urnas são confiáveis quando o próprio presidente da República coloca em xeque essa questão?
Trabalho com o direito à luz das evidências. Até hoje, e as urnas estão aí desde 1996, não se demonstrou a ocorrência de fraude. Nunca houve notícia de fraude, ao tempo que na votação em papel os episódios de fraude eram incontáveis desde a República Velha. Acabar com a urna eletrônica e voltar para o papel é um pouco como cancelar assinatura da Netflix ou Globoplay e abrir uma locadora.
Agora, qualquer pessoa que me traga um elemento concreto e objetivo de algum problema, acho que a Justiça Eleitoral deve ser a primeira a querer apurar. Meu compromisso é com eleições limpas.