A atuação do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Dias Toffoli em ação envolvendo a J&F, conglomerado para o qual a esposa do magistrado advoga, é emblemática de um novo cenário que compromete a imagem de imparcialidade da corte, afirmam especialistas. Na última quarta-feira (20), Toffoli suspendeu uma multa de R$ 10,3 bilhões aplicada à empresa dos irmãos Joesley e Wesley Batista em acordo de leniência firmado em 2017.
Como a mulher do magistrado trabalha para a J&F, ele deveria ser considerado impedido de fazer o julgamento, caso o STF não tivesse mudado seu entendimento com relação a uma das possibilidades de impedimento prevista no CPC (Código de Processo Civil).
Em agosto deste ano, a corte julgou inconstitucional inciso do artigo 144 do Código. O texto vedava a participação do juiz em casos em que “figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório”. Na ocasião, a corte entendeu que a vedação feria os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e do juiz natural.
A mudança, entretanto, foi alvo de críticas. Na época, a PGR (Procuradoria-Geral da República) e a AGU (Advocacia-Geral da União) defenderam a constitucionalidade do dispositivo, entendido como importante para garantir a imparcialidade dos magistrados. A mulher de Toffoli, Roberta Rangel, é advogada do grupo dos irmãos Batista, responsável pela atuação no litígio entre a empresa e a Paper Excellence pelo controle da Eldorado Celulose.
Toffoli, ao decidir sobre o caso, rejeitou um pedido da J&F sobre suspender negócios jurídicos firmados anteriormente. O objetivo desse pedido era rever a venda da Eldorado, negócio sob disputa há anos.
O caso deve ser analisado nas instâncias inferiores.
Para Miguel Godoy, professor de direito constitucional da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e da UnB (Universidade de Brasília), o caso recente envolvendo o ministro Toffoli exemplica um conflito que já havia sido resolvido pelo CPC, mas que foi reaberto pela mudança de interpretação da corte.
”A decisão do ministro Toffoli, independentemente de sua correção ou não, mostra como a atuação de parentes de ministros como advogados em favor de interesses de pessoas julgadas pelos magistrados coloca em xeque a imparcialidade dos ministros e do próprio tribunal”, afirma Godoy.
De acordo com Diego Nunes, professor de direito da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), a mudança contraria princípios éticos básicos de imparcialidade previstos no CPC e na Lei Orgânica da Magistratura.
Segundo ele, a medida passa a ideia de que ”o mundo jurídico é um clube de intocáveis”. ”O STF cria, nesse caso, a ideia de que se encontra acima da lei e de princípios. Claramente existem princípios éticos universalmente conhecidos sobre a imparcialidade”, afirma.
Gustavo Sampaio, professor de direito constitucional da UFF (Universidade Federal Fluminense), afirma que não há, do ponto de vista jurídico, problema em relação ao novo entendimento do Supremo. ”O tribunal considerou que, se houvesse uma restrição ao advogado para o exercício profissional, o fato de ele ter uma relação com o magistrado estaria menoscabando sua autonomia profissional.”
Apesar disso, Sampaio considera que, do ponto de vista moral, a mudança não foi recomendável, uma vez que pode gerar desconfiança sobre a decisão judicial. Jordan Tomazelli, mestre em direito processual pela Universidade Federal do Espírito Santo, afirma que o impedimento era uma maneira de garantir, a partir de um critério objetivo, a imparcialidade dos ministros.
Segundo ele, o princípio da cooperação processual poderia ser utilizado para superar a dificuldade de os magistrados saberem de toda a carteira de clientes de cônjuges e parentes –argumento do STF–, sem ferir a imparcialidade. ”O magistrado não precisaria de forma ativa buscar toda a carteira de clientes de seus parentes e cônjuges. Ele poderia aguardar os próprios envolvidos se manifestarem sobre o impedimento previsto no inciso. Assim, não haveria violação da razoabilidade e proporcionalidade”, afirma Tomazelli.
Para Godoy, o STF decidiu declarar o inciso como inconstitucional e agora, ”sofre com os reflexos de sua própria decisão, que o deixa com a imagem de imparcialidade prejudicada”. Quando o Supremo julgou o tema em agosto, o voto que prevaleceu foi uma divergência aberta pelo ministro Gilmar Mendes, que considerou que o inciso não era ”o melhor remédio para o combate desse problema”. Ele afirmou que o dispositivo do Código de Processo Civil possibilitava a criação de estratégias para evitar que o processo seja julgado por um determinado magistrado.