O Brasil vai entrar em uma das maiores jornadas científicas desde o Projeto Genoma Humano, no final do século 20: o Atlas de Células Humanas (Human Cell Atlas, no original em inglês, ou HCA).
Lucio Freitas Junior, pesquisador do ICB (Instituto de Ciências Biomédicas) da USP, é o responsável por costurar a participação do país no consórcio internacional do HCA. A iniciativa o procurou em busca de representatividade sul-americana. Membros do projeto estiveram em São Paulo nesta semana para apresentá-lo à comunidade científica brasileira.
A ciência por trás da nova iniciativa é de ponta e pode mudar a maneira de entender a vida e as doenças no ser humano.
A citologia e histologia, ramos da biologia, já tinham a função de caracterizar as células, mas até poucas décadas atrás esse conhecimento era apenas morfológico (descrição de seu aspecto) e químico (como reagem a corantes, por exemplo) –sempre dentro de um contexto, como o órgão de origem (como fígado ou cérebro).
A noção do que é uma célula nasceu no século 17, mas ainda não se sabe dizer exatamente o que faz uma célula ser diferente da outra nem quais são os papéis dos diferentes subtipos celulares –mesmo células muito parecidas podem operar de maneira distinta.
Só depois de conhecer um pouco mais a fundo cada uma dessas células será possível juntar as peças e obter novas informações de como os órgãos e tecidos funcionam.
Segundo Alex Shalek, do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), integrante do consórcio, o objetivo é criar uma espécie de tabela periódica das células, ou seja, um grande mapa de referência dos tipos e propriedades de todas as células humanas como uma base para entender, diagnosticar, monitorar e tratar pessoas doentes.
Pelas estimativas iniciais, a primeira versão do atlas deve contar com 10 bilhões de itens, entre os tipos e subtipos celulares e seus possíveis estados.
No arsenal de técnicas a serem empregadas estão microscopia de alta resolução, para observar individualmente o comportamento de cada célula, e análise dos diferentes genes manifestados por cada célula, de acordo com sua localização nos diversos tecidos do corpo.
Uma das coisas mais curiosas sobre o atlas é a grande participação de físicos, matemáticos e cientistas da computação. O volume de dados é tão grande, como os provenientes das análises genéticas, que é preciso encontrar maneiras automatizadas para lidar com tanta informação sem perder o fio da meada.
O grande financiador internacional por trás da iniciativa é a CZI (Chan Zuckerberg Initiative), fundada por Mark Zuckerberg, criador do Facebook, e sua mulher, a pediatra Priscilla Chan. Jonah Cool, da CZI, conta que das cerca de 2.000 propostas recebidas em três editais, nenhuma era da América Latina. O grosso dos participantes está na Europa e nos EUA. Uma nova chamada para projetos será aberta a partir do próximo dia 17, diz Cool.
Em seu último edital destinado ao atlas, anunciado em junho, a CZI anunciou US$ 68 milhões para 38 grupos em mais de 200 laboratórios em 20 países.
Freitas Junior afirma que, graças ao apoio institucional da USP e do ICB e da sinalização positiva da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estágio de São Paulo), o Brasil tornou-se parte oficialmente do consórcio –antes havia apenas colaborações individuais. O plano é agregar outras instituições ao HCA: primeiro, as do estado, depois, do país e, por fim, da América Latina.
“Muitos pesquisadores do país já fazem pesquisas de excelente qualidade. Eles vão continuar fazendo o que fazem de melhor, mas é preciso que eles falem mais entre si, para economizar recursos, ser mais eficientes”, diz.
Entre as possibilidades de contribuição brasileira estão pesquisas com doenças importantes no país, como leishmaniose, chikungunya e doença de Chagas.
“Mas é algo global. Os resultados abastecem a pesquisa básica e a aplicada, que busca algum tipo de medicamento”, diz Freitas Junior.
A tarefa está longe de ser fácil. As técnicas são tão novas –como eram na época do Projeto Genoma Humano– que ainda são caras e relativamente desconhecidas. Separar um pedaço de um órgão (como a pele ou o cérebro) em seus diversos tipos de célula, sem destruí-las, é um desafio, lembra Jorge Kalil, imunologista e professor titular da USP.
Ele diz que uma das possibilidades de estudos, como o mapeamento do perfil de expressão gênica das diversas células integrantes do sistema imunológico, pode ajudar a entender por que certas vacinas protegem mais umas pessoas do que outras.
Outro possível alvo é o câncer. Conhecer exatamente qual tipo de célula o faz crescer, qual é responsável por conseguir alimento e qual impede que o sistema imunológico o reconheça pode ser um caminho para tratá-lo com maior eficiência e menos efeitos colaterais, diz Emmanuel Dias-Neto, do A.C.Camargo Cancer Center