Metade das mulheres (52%) que afirmam ter realizado um aborto no Brasil o fez antes de completar 19 anos, aponta a Pesquisa Nacional do Aborto de 2021, divulgada na última sexta (24) por acadêmicos da UnB (Universidade de Brasília) com apoio da Anis, entidade de defesa de direitos das mulheres.
Além disso, são as mulheres negras, com alguma vulnerabilidade social ou pobreza, que mais realizam um segundo aborto -o chamado aborto de repetição. A ocorrência de dois abortos ou mais na vida está presente em 1 em cada 5 mulheres (21%), e 1 em cada 7 já realizou um aborto até os 40 anos no país.
O inquérito foi realizado entre 13 e 21 de novembro com duas etapas: uma utilizando entrevistas presenciais e outra com as respostas dos questionários colocados em urnas seladas e pareadas às entrevistas. Foram selecionadas aleatoriamente 2.000 mulheres de 18 a 39 anos em 125 municípios urbanos de todas as regiões do país para a pesquisa.
A margem de erro é de 2 pontos percentuais para mais e para menos. Foram ouvidas mulheres alfabetizadas e residentes em áreas urbanas, e a pesquisa pondera que não se sabe se os mesmos resultados podem ser encontrados entre aquelas sem escolaridade e moradoras na zona rural.
As duas edições anteriores, de 2010 e 2016, mostram uma tendência de declínio no percentual de abortos realizados no país, pelo menos segundo a pesquisa: eram 15% em 2010, 13% em 2016 e 10% em 2021.
”A queda, porém, pode indicar um declínio global de gravidezes indesejadas, dado já observado na América Latina e no Caribe”, explica a coordenadora principal da pesquisa e antropóloga da UnB, Debora Diniz.
Embora tenha ocorrido uma queda, é revelador que 46% dos abortos foram realizados dos 15 aos 19 anos, e 6% das mulheres que participaram da pesquisa disseram ter feito o procedimento entre os 12 e 14 anos.
”[O aborto] é um problema de saúde pública da juventude. Ele ocorre em todas as faixas etárias, mas quando analisamos com uma lupa de aumento, o perfil que prevalece é de mulheres menos escolarizadas, do Norte e Nordeste e muito jovens”, afirma a pesquisadora.
Houve também uma redução da proporção de abortos medicamentosos, de 48%, em 2010, para 39% em 2021. Porém, os pesquisadores alertam que, dada a criminalização do aborto no país, pode haver uma subnotificação dos abortos realizados com esses métodos abortivos, uma vez que as mulheres recorrem, em geral, a consultórios médicos.
No Brasil, o aborto só é permitido em três situações: estupro, anencefalia do feto ou risco de vida para a mulher. Nas demais situações, a interrupção da gravidez é considerada crime, de acordo com o Código Penal, de 1940. A legislação estabelece que a mulher que provocar um aborto em si mesma pode ser condenada a pena de 1 a 3 anos de prisão.
Justamente por haver a criminalização, há uma alta taxa de mulheres que são hospitalizadas após um procedimento abortivo ou em decorrência de complicações. Na pesquisa, 43% das respondentes disseram ter sofrido hospitalização em 2021, ante 55% em 2010.
Para Diniz, a forma mais eficiente de prevenir o aborto é com a descriminalização. ”Em países onde o aborto foi descriminalizado houve redução do estigma e discussão ampla de educação sexual e reprodutiva, o que ajuda a prevenir que aquela mulher realize o aborto ou que suas filhas realizem um aborto, porque ela se torna uma fonte de informação”, diz.
Anualmente, cerca de 1.556 internações de meninas de até 14 anos ocorrem no país devido a complicações por aborto ilegal. Toda gestação em meninas de até 14 anos é considerada como estupro, de acordo com a legislação brasileira.
Um levantamento de 2022 aponta que apenas 8% dos abortos que ocorrem são legalizados. Na prática, mais de 90% dos abortos realizados no país são clandestinos.
Em todo o mundo, a cada 100 mil abortos realizados, a OMS (Organização Mundial da Saúde) estima 220 mortes provocadas por abortos clandestinos.
Um estudo de pesquisadoras do Departamento de Pesquisa em Saúde Reprodutiva e Sexual da OMS publicado na última terça (20) no periódico científico BMJ (British Medical Journal) apontou que o aborto é penalizado em 163 dos 182 países analisados. Em 134 deles, a mulher que procura o aborto é criminalizada dentro do Código Penal, e 127 incluem penas para as pessoas que acompanham as mulheres.
As penas analisadas variam, em média, de 0 a 5 anos de detenção, mas elas podem ser maiores em alguns casos específicos, como para os profissionais que auxiliam meninas de até 13 anos no acesso ao aborto. Os dados utilizados no estudo são do Global Abortions Policies Database -base de dados global com informações sobre políticas abortivas.
Segundo as autoras, a criminalização do aborto, seja pela mulher que procura, seja por provedores ou pessoas que as acompanhem só faz aumentar o estigma em torno do assunto, que é um problema de saúde pública global.
”Apesar das evidências dos danos associados à criminalização, na maioria dos países as mulheres que procuram aborto, os provedores e as pessoas que as auxiliam podem estar sujeitos a penas criminais, inclusive com possibilidade de agravamento […], o que fortalece a argumentação para descriminalização do aborto com base na arbitrariedade.”