O drama da ciência médica

Amadeu

As pesquisas científicas se encontram um momento de alta tensão, paradoxalmente, no ponto onde terminam. Isso porque não bastam convicções intelectuais, ainda que unânimes. Os resultados devem ser experimentados. No caso da medicina, sobre este sofrido povo de Deus. Experimentos em animais não racionais também são combatidos por grande parte de organizações internacionais financiadas regiamente por determinados Estados, o que fez recrudescer a complexidade do tema.

Um número expressivo de medicamentos novos é lançado constantemente no mercado dos fármacos. Alguns “colam”, outros não. Ativos financeiros imensos estão envolvidos nos embates que se seguem. Os mais variados interesses brincam aos ventos com a vida humana. Os laboratórios do mundo inteiro, não raro, fazem às vezes de ciclones e tornados fatais. Depois de investidos bilhões de dólares na produção de um novo medicamento, nenhum dos investidores está disposto a perder, ainda que ao preço da desimportante vida humana.

Comparecem, ainda, ao teatro macabro, as más políticas institucionais. Agências, como a Anvisa brasileira, ou órgãos governamentais de todo o mundo, não escapam à regra da instrumentalização do Estado pelo grupo político no poder. Consequentemente, não são os cientistas de ponta que comandam essas importantes instituições, mas os amigos do rei devidamente acomodados na Corte. E não há motivos para crer que esses agentes públicos, à distinção dos demais, sejam impolutos.

Acrescente-se segmentos midiáticos irresponsáveis e movidos por forças nebulosas, que vendem esperanças a seres psicológica e fisicamente despreparados, máxime quando esfarrapados.

Por fim, anote-se a insegurança própria do saber, por mais que humanos de cérebros privilegiados tenham convicções. Antes de determinado período, que não pode ser curto, de emprego seguro do novo medicamento, vigora o princípio da incerteza (Heinsenberg), cravado no centro epistemológico de todas as ciências, humanas e exatas, não apenas nos campos da ciência da preservação da vida.
É exato afirmar que, desde o ainda egrégio surgimento da vida sobre este planeta, a única certeza é a de que tudo é incerto. No assunto sob comento, à história da medicina é uma história de avanços, glórias e, de outro lado, sacrifícios e mortes. Dir-se-ia, ainda, que, sem estes últimos, tal história teria sido travada num tipo de inércia conservadora medieval. Foi indispensável romper cautelas, medos, inseguranças. As vítimas foram o mal necessário da aventura humana e seu processo de sabedoria progressiva.

Num momento em que a sociedade brasileira debate a controvérsia face a um suposto medicamento capaz de erradicar as mazelas do câncer, não  parece suficiente dar crédito à honorabilidade da instituição pesquisadora, a Faculdade de Ciências Médicas da USP de seu excelente “campus” de São Carlos, no centro do Estado de São Paulo. Cremos que a pergunta que se põe diz respeito: a) às consequências negativas na hipótese de experiências que demonstrem a ocorrência do mal e não do bem em sua utilização; b) sua natureza; c) a reversibilidade ou irreversibilidade de efeitos indesejáveis, o que leva a indagar sobre a possibilidade de morte ou de sequelas desqualificadoras da vida do paciente.

Feita essa reflexão, a indagação maior, fundamental, como sempre, é de natureza política conotada o termo de seu sentido da melhor administração possível da coisa pública e do destino dos homens integrantes de determinada nação e cidadãos de um Estado. O Brasil, em seu atual estado de saúde pública completamente deteriorada, seria capaz de intervenções retificadoras massivas no campo clínico, a fim de evitar o pior àqueles que tenham recebido a nova droga? Espalhadas as experiências em vendas irrestritas por um território de amplitude continental, nossas instituições médicas estariam preparadas para nulificar ou, pelo menos, amenizar efeitos deletérios indesejáveis, porém constatados? A resposta é flagrantemente negativa.

Um exemplo significativo está no emprego incontido de hormônios e pílulas anticoncepcionais, liberadas pela Anvisa, prescritas, portanto, sem nenhuma imprudência por médicos, que manifestaram eventos trombolíticos em mulheres predispostas à coagulação do sangue e, não raro, sob efeitos tristemente fatais. Jovens, adolescentes e mulheres de todas as faixas etárias sucumbiram por causa do uso inocente desses medicamentos. Segundo pesquisas, 30% de tais eventos em jovens foram fatais. Não incorremos em leviandade ao afirmar que a maioria integrante desse percentual foi atendida pelo aplaudidíssimo SUS, é dizer, precariamente assistida, para ir de encontro à morte num momento primaveril, cheio de sonhos e esperanças.  Um Estado minimamente ordenado e responsável não pode tolerar tal sordidez; mais ainda, responde por ela. O direito à existência teve sua garantia constitucional simplesmente malbaratada. Os laboratórios científicos não precisam ser lubrificados com as lágrimas de pais, irmãos, parente e amigos.

Daí a conclusão final inexorável: O Estado brasileiro não está preparado para tolerar o emprego de medicações não consagradas, experimentais. Esses experimentos só podem ser adotados em sociedades em que a saúde pública seja massiva e de qualidade em todos os seus aspectos: profissionais, de equipamentos, de bons procedimentos e protocolos efetivamente aplicáveis. Considerado que, lamentavelmente, estamos muito longe disso, registrados os necessários aplausos a nossos cientistas de São Paulo, o medicamento só poderia ser “testado” em países contemplados com sistemas qualificados de assistência médica à generalidade de seus cidadãos. E somente liberado após o amadurecimento internacional, se for justificada sua expansão, observadas as cautelas rigorosas, que sempre guiaram os bons governos, ao aplicá-lo a cada uma das sub-espécies de seres humanos que compõem esse maravilhoso e até mesmo milagroso universo vital.

*Amadeu Garrido de Paula é um renomado jurista brasileiro com uma visão bastante crítica sobre política, assunto internacionais, temas da atualidade em geral. Além disso, tem um veio poético, é o autor do livro Universo Invisível, uma publicação que reúne poesias e contos sobre arte, cultura, política, filosofia, entre outros assuntos, todos os poemas são ilustrados.