Três em cada dez brasileiros se sentem ansiosos, têm problemas com sono e com a alimentação sempre ou frequentemente. Um quarto manifesta pouco interesse ou prazer em fazer as coisas e um quinto relata dificuldade de atenção ou concentração.
Ainda assim, só 7% da população avalia a sua saúde mental pessoal como ruim ou péssima, sendo a faixa etária entre 16 e 24 anos a mais insatisfeita (13%). De uma forma geral, 70% dos brasileiros consideram a saúde mental como ótima ou boa, e 23%, como regular.
Os dados foram aferidos em pesquisa do Datafolha, realizada de 31 de julho a 7 de agosto. Foram ouvidas 2.534 pessoas com 16 anos ou mais em 169 municípios. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos. A população brasileira a partir de 16 anos é estimada em 158 milhões de pessoas, de acordo com o Censo 2022.
Existe uma clara dissonância entre os sintomas relatados, que denotam problemas com a saúde mental, e como as pessoas avaliam o seu estado emocional geral.
Enquanto apenas 5% dos homens e 9% das mulheres consideram a saúde mental pessoal como ruim ou péssima, 23% e 38%, respectivamente, se sentem ansiosos sempre ou frequentemente.
Entre as mulheres, 27% já tiveram diagnóstico de ansiedade e 20% de depressão, o dobro da taxa registrada entre os homens (14% e 10%, respectivamente).
Pouco mais de um quinto da população (21%) pesquisada visitou algum psicólogo, terapeuta, psiquiatra ou algum profissional de saúde mental nos últimos 12 meses. O mesmo percentual teve diagnóstico de ansiedade, 15% de depressão e 8% de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDHA).
Para psiquiatras ouvidos pela Folha, a dissonância entre a autopercepção da saúde mental e os sintomas relatados pode ser explicada pela falta de compreensão e pelo estigma em torno do tema.
”A população não tem ideia de que dormir mal, comer demais e se sentir sem prazer nas atividades habituais são indicativos de um quadro depressivo. Ela associa problemas de saúde mental a transtornos mais graves, psicoses, dependência química”, diz Rodrigo Martins Leite, professor colaborador do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.
O psiquiatra Jair Mari, professor titular da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e atual coordenador da saúde mental do governo paulista, tem a mesma percepção. “As pessoas confundem o conceito de saúde mental. Acham que, ao dizer que ela não está boa, pode significar uma doença mental grave, como esquizofrenia. E há todo um estigma em torno desses transtornos.”
Os dados também reforçam o que outras pesquisas já mostraram: a saúde mental feminina está mais pressionada do que a masculina. Pouco mais de um quarto das mulheres (26%) sente pouco interesse ou prazer em fazer as coisas, enquanto entre os homens o índice é de 23%. Tristeza, depressão e falta de esperança são relatadas por 13% delas e 7% deles.
A relação com o sono e a comida também não vai bem: 35% das mulheres relatam dificuldade para dormir ou dormem demais e 35% têm pouco apetite ou comem em excesso. Entre os homens, os índices são de 25% e 33%, respectivamente.
O impacto é maior das classes D e E, onde 37% têm problemas com sono com grande frequência, ante 29% entre os brasileiros da classe C e 25% das classes A e B. Quanto aos problemas de alimentação nessas classes, as taxas são de 35%, 30% e 22%.
”No mundo todo, as mulheres têm mais taxas de depressão e ansiedade e há vários fatores psicossociais que explicam isso como dupla, tripla carga de trabalho. Nas periferias, a maior exposição à violência e às adversidades são fatores de risco adicionais”, afirma o psiquiatra Leite.
Considerando os nove sintomas avaliados na pesquisa —pouco interesse ou prazer em fazer as coisas; triste, deprimido ou sem esperança; dificuldade para conseguir dormir, manter o sono ou dorme demais; cansado ou sem energia; pouco apetite ou come em excesso; mal consigo mesmo, ou que é um fracasso, ou que decepcionou a si mesmo ou sua família; dificuldade em se concentrar em coisas como ler ou assistir TV; sente que sua fala e movimentos estão lentos, ou o contrário, inquieto e agitado; ansioso—, 12% dos brasileiros reúnem de cinco a oito deles com alta frequência. Entre mulheres, esse índice é de 15% —o dobro da taxa registrada pelos homens (8%).
A microempresária Thaís Silva Vilela, 32, diz que sente na pele o estigma da depressão cada vez que enfrenta crises e decide ficar em casa, descansando. “Ninguém entende a depressão como [entendem] uma doença física. É assim: ‘levanta e vai trabalhar assim mesmo’. Será que eu preciso dar uma desculpa, inventar uma doença física para ficar em casa?”, questiona.
Atualmente, ela conta que tem oscilado entre a ansiedade e a depressão. É acompanhada por psiquiatra e psicóloga e faz uso de medicação para essas condições. ”Na ansiedade, a gente quer fazer tudo de uma vez, quer dar conta do mundo. O pensamento acelerado faz a gente não dormir”, relata.
No início deste ano, ela conta que sofreu “uma baixa” devido a um problema pessoal. ”Passei a ter sintomas depressivos, vontade de não sair da cama, de não fazer nada. Eu só quero dormir, mas não consigo porque a cabeça está acelerada.’
Segundo Thaís, os problemas com a saúde mental começaram em 2017, após enfrentar a síndrome de burnout. À época, trabalhava em uma empresa de seguro e ficou 20 dias internada em uma clínica. Nos seis meses seguintes, foi acompanhada diariamente em um hospital-dia, onde passou por diversas terapias.
Após esse período, foi demitida, perdeu o plano de saúde e decidiu dar um outro rumo à vida. Hoje ela está no sexto ano da faculdade de veterinária e tem uma microempresa de passeadores de cães. ”A internação, as terapias me ajudaram muito a entender que sou eu que tenho que lidar com os meus problemas, ninguém vai fazer isso por mim”, diz.
Assim como Thaís, 28% das pessoas entre 25 e 34 anos visitaram algum profissional de saúde mental nos últimos 12 meses. É o índice mais alto entre todas as faixas etárias. A taxa sobe para 32% entre quem tem curso superior e para 40% na faixa de renda acima de dez salários mínimos.
A pesquisa mostra ainda que há um gargalo entre o diagnóstico de ansiedade, depressão e o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDHA) e o tratamento médico e medicamentoso —apenas 9%, 6% e 3% dos brasileiros estão tratando dessas condições, respectivamente.
Em relação à depressão, o índice de tratamento (com e sem medicação) entre as mulheres chega a ser o triplo em relação aos homens (9% contra 3%). Na ansiedade, é o dobro (13% contra 6%), e no TDHA, igual (3%).
”Existe uma falta de acesso tanto no sistema público quanto no privado aos serviços e profissionais de saúde mental. Há regiões do país em que eles não existem, e a atenção primária à saúde muitas vezes não está preparada para lidar com essa demanda”, diz Rodrigo Leite.
Segundo o psiquiatra Jair Mari, a atual política pública de saúde mental, com os Caps (centros de atenção psicossocial), é muito voltada às condições mais graves. “Há um hiato. Uma pessoa com depressão, ansiedade, com transtorno do déficit de atenção, com bulimia, não consegue atendimento”.
Para ele, os dados do Datafolha mostram que essa ideia de que a sociedade brasileira é muito medicalizada não é real.”Quem são medicalizados são os ricos, que têm acesso à psicanálise, a psiquiatras, a medicações. Nós vivemos a lei dos cuidados invertidos. Quem precisa, não tem. E quem não precisa, tem demais.”
Christian Kieling, professor do departamento de psiquiatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), aponta que, no Brasil, saúde mental ainda é vista como um privilégio, e não um direito. ”A maior parte dos cuidados ocorre em consultórios privados. A pessoa tem que estar muito bem de vida para conseguir cuidar da sua saúde mental ou tem que estar muito mal para obter um tratamento na rede pública”, afirma. ”E quem está entre esses dois polos é, muitas vezes, negligenciado.”
O estigma também é outro entrave, segundo Rodrigo Leite. “Se a pessoa não admite ter um problema, isso acaba atrasando a procura por ajuda ou até mesmo impedindo”, afirma o psiquiatra.
A pesquisa Datafolha também avaliou a percepção do brasileiro sobre a saúde física. De novo, apenas uma minoria (6%) a considera ruim ou péssima, índice semelhante ao da saúde mental. Entre os homens, 72% a classificam como ótima ou boa e 23% como regular.
”Ambas as avaliações surgem com a mesma magnitude, então, a atenção primária à saúde precisa ter um olhar, no mínimo, de equiparação entre saúde física e mental”, diz Kieling.
Para Rodrigo Leite, os brasileiros estão normalizando ter uma má saúde física e mental. ”Estamos normalizando ter depressão, ser obeso, não fazer atividade física. A percepção social do adoecimento não está legal.” *Cláudia Collucci e Fernanda Mena / Folha de São Paulo