Ao mirar na expressiva parcela de eleitores pobres do país, a campanha presidencial de 2022 desvirtuou completamente o principal objetivo do que seria um bom programa social: a focalização nos realmente pobres, com repasses de valores diferenciados às famílias, a depender de fatores como sua vulnerabilidade e número de membros e filhos em cada residência.
Atrás de votos, tanto Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quanto Jair Bolsonaro (PL) prometeram manter o agora Auxílio Brasil (antigo Bolsa Família) em R$ 600 —sem distinção entre os beneficiários. Segundo a FGV Social, o Brasil encerrou 2021 com cerca de 14% da população na pobreza extrema. São quase 31 milhões de brasileiros (uma Venezuela) com renda domiciliar per capita até R$ 281.
Desde o início dos anos 1990, o Brasil vinha fazendo um trabalho relativamente bem-sucedido no combate à miséria. Em 1993, havia 36,6% dos brasileiros na pobreza extrema. Foi a partir de 2003, no governo Lula, que a taxa caiu consistentemente pela combinação de um Bolsa Família bem focalizado, com valores diferenciados e condicionalidades (crianças deveriam frequentar escolas e postos e saúde) e aceleração do crescimento econômico (média de 4% ao ano nos dois mandatos do petista).
Sob Lula, o total de miseráveis caiu de 29% da população (2003) para 14% (2010), chegando a recuar a 8,6% em 2014, no governo Dilma Rousseff. A crise fiscal e a brutal recessão que se sucederam a partir dali puxaram novamente a taxa para a casa dos dois dígitos, até chegarmos aos 14% de miseráveis atuais.
Especialistas em desigualdade consideram completamente desvirtuada a forma como o ataque à pobreza vem sendo feito desde que começou a disputa pelos pobres na eleição. ”O que domina é a visão oportunista eleitoral e pouco foco na superação da pobreza estrutural. A política social de cunho assistencial cresce em recursos, mas perde eficácia. Andamos para trás em relação ao que o Bolsa Família fazia”, diz Marcelo Neri, diretor do FGV Social.
Outra referência na área, o economista Ricardo Paes de Barros, defende uma espécie de revolução na identificação e no acompanhamento dos mais pobres, com a utilização de uma ampla estrutura que já existe, como os dados do Cadastro Único e os centros de assistência social (Cras e Creas) espalhados em 95% dos municípios do país —que poderiam fazer o corpo a corpo para identificar famílias mais vulneráveis e suas necessidades.
Para Laura Muller Machado, professora do Insper e ex-secretária de Desenvolvimento Social do governo paulista, o Estado brasileiro precisa fazer uma espécie de ”match” com os mais pobres para identificar e atender suas demandas mais urgentes. O principal objetivo, diz, deveria ser a interrupção do atual ciclo de pobreza intergeracional, que leva filhos de pais pobres a se tornarem, no futuro, pais de filhos pobres.
O Brasil gasta cerca de 25% do PIB (R$ 2,2 trilhões) na área social, incluindo saúde, educação e Previdência, entre outros. Enquanto vigorou, o Bolsa Família consumia pouco mais de 0,5% do PIB (cerca de 43,5 bilhões a preços de 2021), sendo bem-sucedido por conta da focalização.
Barros defende, por exemplo, um programa que chegasse a 1% do PIB (quase R$ 90 bilhões), bem focalizado e que leve em conta as vulnerabilidades de cada família, número de filhos, entre outros fatores. A proposta de Orçamento de 2023 para o Auxílio Brasil prevê R$ 105,7 bilhões a 21,6 milhões de famílias. Nela, o valor médio do benefício seria de R$ 405,21. Para chegar aos R$ 600 que Lula e Bolsonaro prometeram, seriam necessários mais R$ 51,8 bilhões, segundo cálculos da Instituição Fiscal Independente (IFI).
No atual formato do programa, o que ocorre é justamente o contrário da focalização. Dados do Ministério da Cidadania publicados pelo jornal Valor Econômico mostram que, de novembro de 2021 a setembro deste ano, as famílias unipessoais passaram de 15,2% do total de beneficiadas para 25,8%, O fato, que não encontra respaldo em mudanças demográficas recentes, sugere que membros de uma mesma família podem estar fazendo cadastros separados para receber mais de um benefício.
Para o economista Naercio Menezes Filho, diretor do Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância, o fundamental na construção de um programa social seria colocar uma lupa nas necessidades das famílias, especialmente naquelas com crianças muito novas.
”Para as famílias com crianças pequenas, não adianta só os pais terem o suficiente para comer, mas não para comprar remédio, roupa e as crianças se desenvolverem em um ambiente saudável, em que a mãe tem tempo para conversar e interagir com o filho”, diz Menezes Filho. O risco de o país desperdiçar recursos sem a focalização na primeira infância e na educação é que, quando adultos, essas mesmas crianças acabem, como os pais, dependentes de programas sociais.
Fernando Canzian/Folhapress