”Parabéns ao atirador. Parabéns ao juiz. Parabéns à população por se armar”. Foi com frases desse tipo que grupos pró-armas comemoraram nas redes sociais a decisão de um juiz estadual que anulou a prisão em flagrante, por porte ilegal de arma, de um comerciante registrado como CAC (colecionador, atirador desportivo e caçador) que matou um suspeito durante tentativa de assalto em Jundiaí (a 58 km de São Paulo) no final do mês passado.
O delegado considerou ser crime o atirador esportivo, mesmo agindo em legítima defesa, andar com uma pistola dentro do carro sem estar a caminho de um estande de tiro. Voltava, à noite, de uma pizzaria dele. O juiz Orlando Haddad Neto discordou, porém, dessa interpretação e mandou devolver a arma, a documentação e, ainda, o dinheiro da fiança (R$ 6.060).
”A despeito dos respeitosos fundamentos trazidos pela autoridade policial, não há elementos iniciais que permitam uma conclusão, ainda que provisória, a respeito da irregularidade do porte de arma do indiciado”, diz trecho da decisão.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, a decisão do magistrado é o retrato extremado de uma insegurança jurídica instalada no país com a série de atos normativos publicados no governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) que, na prática, enfraqueceram um dos principais pilares do Estatuto do Desarmamento: a proibição de o cidadão comum andar armado.
A ”bagunça” jurídica, como os especialistas tratam a atual situação sobre as leis envolvendo armas, ganha novos contornos neste ano com a chuva de projetos apresentados por parlamentares em assembleias estaduais e até em câmaras municipais que tentam garantir ao CAC o direito de andar armado.
”Tem essa história da subjetividade de se estabelecer o que é e o que não é esse trajeto entre a casa e o local de tiro. Isso fez com que, na prática, os mais de 450 mil CACs no Brasil ganhassem porte de arma automático, simplesmente pelo fato de serem caçadores ou atiradores”, diz Ivan Marques, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e especialista no tema.
Essa insegurança jurídica, ainda segundo Marques, é o que acaba opondo juízes e policiais, como o caso de Jundiaí. ”Não diria que há uma zona cinzenta, mas uma zona mesmo. Zona ponto. É uma bagunça. Acho que esse foi um pouco o objetivo do governo federal ao criar mais de 30 atos normativos, entre decretos, atos administrativos, regulações e portarias. É uma bagunça danada.”
De acordo com levantamento do Instituto Sou da Paz, o governo federal já publicou 17 decretos presidenciais, 19 portarias (incluindo do Exército e da PF), 3 instruções normativas, 2 projetos de lei e 2 resoluções. As medidas, no geral, ampliam o acesso da população a armas e munições e, por outro lado, enfraquecem os mecanismos de controle e fiscalização de artigos bélicos.
Um outro levantamento, do Sou da Paz e do Instituto Igarapé, revela que em todas as 27 unidades da Federação há projetos nas assembleias legislativas que tratam do tema, a maioria para tentar garantir porte de armas aos CACs, embora esse seja assunto de competência exclusivamente federal.
De acordo com o pesquisador Felippe Angeli, um dos responsáveis pela pesquisa, 90% desses projetos foram apresentados neste ano por parlamentares ligados ao grupo pró-armas e ao deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) que, segundo ele, visitou as assembleias e articulou esse movimento.
Ainda segundo Angeli, mesmo inconstitucional, e passível de ser derrubada no STF, essa legislação estadual consegue promover os parlamentares ligados ao tema, aquece o debate sobre o uso de armas no país e, também, fortalece a política do governo federal que ele chama de ‘óleo na pista”.
”No caos, eles reinam. […] Essa grande confusão sobre o tema foi instalada a partir de Bolsonaro. Eles nunca revogam [os decretos anteriores], o que poderiam fazer numa canetada, um para colocar outro no lugar. Eles ficam revogando pontos, o que fica um emaranhado”, disse.
O STF já analisa a situação dos CACs no país, incluindo a posse e o porte, mas a discussão está parada.
A maioria das propostas busca, nos estados, o reconhecimento de que os CACs desempenham atividade de risco e, assim, necessitam de porte de arma de fogo para garantir a integridade física.
”Este projeto de lei […] pretende resolver, de uma só vez, os problemas de segurança pública e segurança jurídica decorrentes do fato de que os membros desta categoria, os CACs, não vêm tendo assegurado o porte de suas armas de fogo”, diz trecho do projeto apresentado por parlamentares de São Paulo.
Para o delegado e apoiador de CACs Gustavo Galvão Bueno, da Polícia Civil de São Paulo, a confusão das leis de armas obriga, muitas vezes, as pessoas a criarem subterfúgios para garantir direitos legítimos, como deveria ser, segundo ele, o porte de armas no Brasil.
”É muito difícil a pessoa obter o porte. Aí, por conta disso, o que as pessoas fizeram? Acabaram utilizando a posse [de arma] como uma maneira de flexibilizar [a lei], e atingir os seus direitos de portar uma arma de fogo. Criou-se, por exemplo, os estandes de tiro 24 horas para a pessoa justificar o trânsito da arma de madrugada. Aí, ela diz que estava indo ao estande de tiro”, disse.
Isso poderia ser resolvido, ainda segundo ele, com a flexibilização do porte de arma, criando critérios objetivos de quem pode e quem não pode. Como está atualmente, afirma Bueno, tanto o delegado quanto o juiz de Jundiaí tomaram decisões plenamente justificáveis.
”Essa bagunça legislativa torna também difícil para o cidadão saber como ele deve ser portar”.
DA CASA PARA O ESTANDE
O porte de trânsito é um documento que permite ao CAC levar consigo uma arma municiada de casa para o estande de tiros, onde pratica a pontaria. Ele foi criado em 2017, ainda no governo Michel Temer (MDB), mas limitava esse trânsito a horários específicos e percurso pré-determinado.
”O governo Bolsonaro estendeu o porte de trânsito para todo território nacional. Estendeu a todo o Brasil, a qualquer horário”, diz Ivan Marques. Com a mudança, não é mais preciso ter um percurso fixo.
Para a advogada Isabel Figueiredo, também do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a insegurança jurídica com esse importante tema é preocupante porque prejudica, inclusive, a fiscalização pelas forças policiais. Ela é contra a flexibilização do porte de arma com solução do problema.
”Dizem que a população brasileira está se armando. Não. Primeiro, porque a população brasileira não tem dinheiro nem para comprar leite. E 70% são contra as armas. Quem está se armando são esses malucos, o que significa um perigo horroroso”, disse ela, referindo-se a pesquisa Datafolha.
Procurada, a Polícia Militar de São Paulo informou que, no caso de um policial eventualmente se deparar com um CAC portando arma em um caminho claramente diferente da rota de um estande, ”há a condução ao distrito policial”, com fundamento no Estatuto do Desarmamento.
Já a Polícia Civil informou que situações envolvendo CACs são analisadas caso a caso, e as deliberações são tomadas pelos delegados de acordo com as convicções e poder de discricionariedade.
Procurado via Tribunal de Justiça de São Paulo, o juiz Orlando Haddad Neto não respondeu se considera que a decisão dele afronta o Estatuto do Desarmamento.
Rogério Pagnan/Folhapress