Nos últimos meses, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, tem visto a postura da instituição no combate à inflação ser questionada por parte do mercado financeiro.
Responsável por levar a taxa básica de juros (Selic) à mínima histórica de 2% ao ano em 2020, a gestão atual se coloca agora como protagonista de um dos movimentos de aperto monetário mais intensos da história do regime de metas de inflação, implantado em 1999 —sem alcançar ainda o efeito necessário.
Nesta sexta-feira (10), o IPCA, índice oficial da inflação, alcançou 10,74% nos 12 meses encerrados em novembro. Já está claro que o resultado do ano ficará muito acima da meta definida pelo CMN (Conselho Monetário Nacional), que foi de 3,75%, com intervalo de tolerância de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo.
Por determinação da lei que rege o sistema de metas, Campos Neto terá de enviar no início de 2022 —após a divulgação do IPCA do ano fechado— uma carta ao ministro da Economia, Paulo Guedes, para explicar por que a inflação está fora da meta, detalhar os procedimentos para ajustar o rumo e definir o prazo em que isso será cumprido.
Na atual gestão, o executivo vindo do Banco Santander também passou por uma mudança importante em sua posição no governo. Em abril deste ano, foi nomeado para o mandato de presidente da instituição até 2024, dentro da nova legislação que dá autonomia ao BC e prevê mandatos fixos para seus diretores.
Com a mudança, perdeu o status de ministro de Estado, mas ganhou a possibilidade de continuar à frente da autoridade monetária até o final do segundo ano do próximo governo, seja quem for o eleito em 2022.
O presidente do BC também se viu recentemente em meio a duas polêmicas, uma delas envolvendo críticas à condução da política monetária.
Em outubro, surgiu a revelação de que ele e o ministro da Economia mantêm empresas em paraísos fiscais, o que gerou uma apuração preliminar arquivada pela PGR (Procuradoria-Geral da República).
No mesmo mês, uma gravação em um evento fechado do BTG Pactual mostrou o dono do banco, André Esteves, relatando uma conversa com o presidente do BC, ocorrida cerca de um ano antes, sobre o limite para a queda dos juros.
”Eu me lembro que os juros estavam amanhecendo a uns 3,5% e o Roberto me ligou para perguntar: ‘pô, o que você está achando, onde você acha que está o lower bound [limite inferior]?’ Eu falei, ‘olha, Roberto, eu não sei onde é que está, mas eu estou vendo pelo retrovisor, porque a gente já passou por ele.’ Em algum momento a gente se achou inglês demais e levou esse juros a 2%”, disse Esteves.
A narrativa repercutiu negativamente, e o BC afirmou que, como órgão regulador, os membros da diretoria colegiada ”mantêm contatos institucionais periódicos com executivos de mercados regulados e não-regulados para monitorar temas prudenciais que possam ameaçar a estabilidade do sistema financeiro e/ou para colher visões sobre a conjuntura econômica”.
A opinião de André Esteves sobre o BC ter passado do ponto não é um caso isolado, mas também não é consenso entre economistas.
O Brasil seguiu o movimento mundial de redução dos juros em resposta à pandemia em 2020 e foi um dos primeiros a rever essa política, em março deste ano, quando a inflação disparou. Agora, já se destaca com o maior choque de juros em quase 20 anos.
O índice de preços no Brasil avançou bem mais do que no exterior e deixou o país entre os três com inflação acima de 10%, considerando as economias avançadas e emergentes mais relevantes.
Uma análise dos comunicados do Copom (Comitê de Política Monetária) e discursos do presidente do BC e de outros diretores no período mostra que a queda dos juros foi acompanhada pela redução nas projeções de inflação, tanto da instituição como do mercado.
As expectativas de inflação começaram a subir de forma significativa em dezembro do ano passado, mas o BC argumentou que ainda estavam abaixo da meta de 3,75% para 2021. No final de janeiro, se aproximaram mais desse patamar, e o BC sinalizou que poderia elevar os juros em breve.
Na reunião seguinte do Copom, no final de março, as estimativas do BC já estavam próximas ao limite de 5,25% —o mercado ainda estava um pouco mais otimista com a inflação—, o que levou a instituição a começar o ciclo de alta de juros com um aumento de 0,75 ponto percentual na Selic.
Desde então, o BC prometeu várias vezes manter o ritmo de alta, mas acelerou o passo em dois momentos, levando a taxa rapidamente para os atuais 9,25% ao ano —com expectativa de um novo aumento de 1,50 ponto percentual em janeiro do ano que vem e outra alta em março, o que levará a Selic para mais de 11% ao ano.
A avaliação do Copom sobre o nível de juros adequado também mudou rapidamente em seus comunicados, acompanhando a escalada dos preços: era necessário estímulo extraordinário em janeiro, algum estímulo nas reuniões seguintes, patamar neutro em junho, acima do neutro em agosto e contracionista a partir de setembro.
A discussão mais recente é se haveria algum exagero na postura atual da instituição dada a estagnação da economia e a defasagem entre a alta dos juros e seus efeitos.
Em grande parte, a diferença entre a alta da inflação no exterior e no Brasil é atribuída a uma questão na qual Campos Neto ganhou protagonismo neste ano: a discussão sobre a política fiscal.
O presidente Bolsonaro e o Congresso, com aval do ministro da Economia, tentam encontrar espaço para aumento de despesas no ano eleitoral. Nesta semana, o Congresso promulgou a parte da PEC dos Precatórios que muda o cálculo do teto de gastos —os artigos que tratam do calote nessas dívidas ainda estão em análise no Congresso.
Desde que o rompimento do teto se tornou fato, o cenário econômico se deteriorou significativamente, conforme anotado pelo próprio BC, ao afirmar que “recentes questionamentos em relação ao arcabouço fiscal elevaram o risco de desancoragem das expectativas de inflação”.
Em suas apresentações, Campos Neto costuma utilizar um gráfico que mostra a queda da Selic desde a implantação do teto de gastos e da redução dos subsídios aos juros do BNDES, mudanças adotadas no governo Michel Temer.
O executivo também ressalta sempre os trechos dos comunicados do Copom sobre a necessidade de manter as contas públicas sob controle —e ancoradas no teto de gastos— para que seja possível evitar aumentos maiores de juros.
Chamou a atenção do mercado neste segundo semestre a diferença entre o discurso de Campos Neto e Paulo Guedes sobre a questão. Enquanto o ministro diz que o fiscal não está fora de controle, o presidente do BC afirma que o dano causado pela implosão do teto já é permanente, ao criar uma incerteza que impactou o dólar, a inflação e as expectativas de crescimento.
“O governo tem de passar uma mensagem responsável sobre qual será a trajetória fiscal daqui para frente”, disse Campos Neto em agosto deste ano, afirmação que não foi bem recebida pelo governo. Posteriormente, o presidente do BC amenizou o tom e passou a incluir em suas apresentações gráficos que mostram melhora nos indicadores das contas públicas.
Na época, circulou a informação de que Bolsonaro teria se arrependido de dar autonomia ao BC, o que foi negado pelo Palácio do Planalto. A inflação é uma das questões que mais preocupam os planos de reeleição do presidente atualmente. O presidente do BC chegou a ser aconselhado a não ir a eventos com políticos que integram o governo Bolsonaro.
Campos Neto também adotou um discurso sobre vacinação que destoa do restante do governo, ao ser um dos primeiros ocupantes de primeiro escalão a divulgar imagem do momento em que tomou a primeira dose —havia ministros que preferiram esconder do presidente que tinham se vacinado.
Na época em que foi indicado por Bolsonaro para o mandato fixo no BC, ele chegou a ser cotado para o cargo de ministro da Economia, diante do enfraquecimento de Guedes, que segue na função até hoje.
Críticas à postura do Copom não são novas no regime de metas e algumas vezes partem de integrantes do próprio governo, como aconteceu nas gestões de Arminio Fraga (1999-2002) e Henrique Meirelles (2003-2010) –o vice-presidente José Alencar Gomes da Silva (1931-2011) era um desses críticos no governo Lula.
Alexandre Tombini (2011-2016), por outro lado, era visto pelo mercado como um dirigente sujeito às interferências políticas da então presidente Dilma Rousseff. Seu sucessor, Ilan Goldfajn (2016-2018) também foi questionado. Na época, por não ter cortado mais os juros no final do governo Michel Temer, quando a economia patinava após a recessão de 2014-2016.
Todos os comandantes do BC desde 1999 já tiveram de justificar o descumprimento da meta de inflação. Campos Neto se juntará à lista e tentará não repetir o feito por dois anos seguidos.
*por Eduardo Cucolo/Folhapress