Jamais esquecerei aquela terça-feira, 30 de dezembro de 1952. Tinha 20 anos e amanheci na primeira página de todos os jornais de Minas, execrado com foto e tudo. Havia dois anos apenas, ainda no seminário, de batina, piedoso, estudava filosofia e teologia, certo de que logo seria padre e um dia bispo, quiçá cardeal.
Em um dos jornais, a manchete era minha, exclusiva, letras enormes:
“Confirmam-se as acusações de “Tribuna de Minas” sobre as ligações do Sr. José Mendonça com os elementos comunistas”.
E no longo subtítulo minha sentença de morte:
– “Preso ontem um redator de “O Diário”, justamente o homem de confiança do presidente do Sindicato dos Jornalistas de Minas. Carregava cartazes encimados pelo retrato de Prestes. Vêm de longe as atividades subversivas do Sr. Sebastião Nery”.
A matéria começava assim, sempre na primeira página:
“Um fato policial vem confirmar as denúncias que “Tribuna de Minas” tem feito, em sucessivos editoriais, de que o órgão do pensamento católico no Estado, através da ação consciente ou não de seu redator-chefe, está servindo de instrumento nas mãos dos comunistas em Minas. Referimo-nos à prisão do universitário Sebastião Nery, redator de “O Diário” e protegido do Sr. José Mendonça naquele jornal.
Na tarde de ontem, a polícia varejou uma célula vermelha na rua Carijós, 774, onde se reuniam componentes das conferências pró-defesa dos direitos da juventude, organização esta que já tivemos oportunidade de denunciar. Durante sua repressão, os policiais detiveram diversos elementos ligados às classes estudantis e agitadores, entre os quais se encontrava o referido redator de “O Diário”.
Aquela cadeia foi minha primeira grande lição de jornalismo. Ela me ensinou o que é a imprensa muito mais do que os meses em que eu já vinha trabalhando no jornal. Nada do que os vários jornais publicaram sobre mim e meus colegas presos era inteiramente falso.
A Tribuna de Minas era um jornal de Ademar de Barros, dirigido por Alexandre Konder, catarinense de talento e coragem, texto brilhante, borbulhante, confessadamente fascista, primo do senador Jorge Konder Bornhausen.
Konder tinha horror ao presidente do Sindicato dos Jornalistas de Minas, José Mendonça, meu mestre e de gerações de jornalistas, redator-chefe de O Diário, jornal da Igreja Católica, onde em 1952 fiz meu batismo profissional, porque Fernando Henrique ainda não havia acabado com a era Vargas e o Sindicato exigia que Konder cumprisse as obrigações trabalhistas.
O Partido Comunista e a UJC (União da Juventude Comunista), a que pertencíamos, eram ilegais e drasticamente reprimidos pela polícia. Para atuar politicamente, lançávamos mão de atividades mais amplas ou disfarçadas.
Nas conferências de defesa da juventude, discutíamos o Brasil e o mundo. Nesse dia, instalávamos em Minas o Movimento Mundial da Paz. A guerra da Coréia dividia o mundo e estávamos indignados com a Coréia do Sul, capitalista e dependente dos Estados Unidos, que havia criminosamente invadido a Coréia do Norte, socialista e irmã da União Soviética.
Muitos anos depois, em Roma, numa entrevista coletiva, perguntei a Gorbatchev e ouvi, perplexo, que foi a Coréia do Norte que invadiu a do Sul, e não o contrário, como me disseram na época.
Fui preso merecidamente. Errei de Coréia.
*Por Sebastião Nery