Macunaíma não é brasileiro, é venezuelano. Quem me ensinou foi o então embaixador do Brasil em Caracas, Renato Prado Guimarães, jovem e competente que lá me deu inesquecíveis lições.
Teodor Koch Grumberg, um alemão aventureiro que se meteu pela floresta amazônica no princípio do século, publicou em Berlim, em 1917, em cinco volumes, a história de suas viagens: “De Roraima ao Orinoco”. Recolheu lendas da região, inclusive a de “Urariquera” e suas peripécias. Nosso Mário de Andrade, culto e gênio, leu Grumberg no original e mudou “Urariquera” para “Macunaíma”, mito, herói e retrato de nossos povos irmãos.
O brasileiro tem, com o venezuelano, uma marca hereditária fundamental: além de descendentes de europeus e negros, somos filhos de índios da planície, bem diferentes dos índios das montanhas. O índio amazônico não está preso às geleiras dos Andes, amarrado a caminhos ínvios. É o índio livre, solto, nômade, da planície. Isso distingue e diferencia brasileiros e venezuelanos dos outros povos da América andina. A jovialidade, a alegria, a musicalidade, a extrema facilidade de comunicação, uma abertura irresistível para o exterior, tudo isso são coisas muito nossas e deles, muito iguais. Você entra em um avião, sai pela América Central, pelo Caribe, e logo percebe quando há brasileiros ou venezuelanos: sempre mais alegria, barulho e graça a bordo. E as mulheres, modéstia à parte, irresistivelmente mais belas, mais charmosas. É o caminhar liberto de “urariquera”, aliás “Macunaíma”, na floresta sem neve e sem fronteiras.
Se houvesse neve e a floresta fosse branca e esquálida na infinita “taigá”, ali seria a Sibéria deles. Como é a grande savana, cercada da floresta tropical, com rios gordos e revoltos, é mesmo a Amazônia da Venezuela. Na Sibéria vi a mais grandiosa obra humana de ocupação planejada de uma região deserta, solitária. No Orinoco vi o maior projeto de industrialização e desenvolvimento na Amazônia continental. E sem destruí-la. Como sabemos pouco e mal de nossos irmãos latino-americanos! Eu que pensava conhecer quase o mundo inteiro, só então descobri que, na Venezuela, São Paulo fica na Amazônia.
A região se chama Guayana. O Estado, Bolívar. A capital administrativa, também Bolívar. A capital industrial, Guayana. A cidade moderna, planejada, avenidas largas, arborizadas, como Brasília, Puerto Ordaz. Mas quem dá vida, e alma, e seiva, e riqueza a mais de 50% do território do país é um rio, sagrado como o Nilo, unitário como o São Francisco, generoso como Amazonas, o Orinoco, engordado pelos afluentes Caroni e Apure. Os números são grandiosos, amazônicos. Limitada ao norte pela Cordilheira da Costa e a Oeste pela Cordilheira dos Andes, a bacia do Orinoco, ao sul e a leste, praticamente coincide com os limites políticos do país. Fora as vertentes das duas cordilheiras, 80% do território venezuelano correspondem à bacia do rio, um território de mais de 700 mil km2, com apenas 20% da população. A região da Guayana, com 45% do território do país, tem só 3% da população total. O Orinoco é uma imensa coluna vertebral de oeste a leste, 1200 quilômetros, e, com os afluentes, 3 mil quilômetros navegáveis, com possibilidade de integração ao Amazonas e ao Prata. E embaixo petróleo, muito petróleo.
Que sempre foi a ventura e a desventura da Venezuela.
*Por Sebastião Nery