As tatuagens, escarificações e marcas corporais estão cada vez mais presentes na adolescência atual, não acham? Mas esses são fenômenos antigos e realizados por diversas sociedades. Fato comum, como ritual de passagem, de iniciação da vida adulta em diversas comunidades. Essas inscrições simbólicas no corpo, que são vividas em algumas tribos e comunidades como rituais de passagem da vida infantil para a adulta, tratam de aniquilar ou dar forma ao corpo a depender de cada caso. Na contemporaneidade, vivemos a expansão do uso das marcas corporais, mas não parecem ter mais o poder simbólico dos ritos.
Frequente em comunidades, grupos fechados nas redes sociais e nos consultórios de psicologia, a automutilação na adolescência tem sido um ato relevante na atualidade. O corpo tem se tornado objeto de perseguição, assim, o adolescente projeta suas tensões no corpo na tentativa de dominá-las. As dificuldades em lidar com as mudanças corporais e a necessidade de fazer parte de um grupo aumentam as tensões nessa fase da vida. Ao mesmo tempo em que quer e precisa de maior liberdade e responsabilidade para consigo mesmo, o adolescente revela um embaraço ao lidar com as consequências dos seus atos.
Os cortes, queimaduras, espancamentos aparecem como um misto de dor e alívio. É um remédio à angústia que parece não ter fim. Pacientes relatam que ao ver o sangue escorrer, o machucado aparecer é como se estivessem esvaziando seu corpo de toda angústia, tristeza ou mesmo alegria que estavam sentindo naquele momento.
Geralmente, os machucados no corpo começam em lugares que outras pessoas não possam ver. Ao mesmo tempo em que sentem cada vez mais vontade de fazer a autoagressão, por conta do alívio momentâneo, revelam receio quanto ao olhar do outro. Olhar que fascina e mata, porque, ao mesmo tempo em que acalenta, lhe aprisiona.
Casos de automutilação são cortes na alma
e devem ser tratados por psicólogo
No início, desejam apenas se punir, mesmo que inconscientemente. Referem, na maioria das vezes, que o primeiro corte acontece por impulso. Depois, começam a sentir necessidades maiores do ato, com relação à regularidade, quantidade, forma e tipos de objetos cortantes. Ao falar de si costumam se colocar como viciados, fazendo a comparação como se usassem álcool ou outras drogas.
A relação familiar costuma ser complexa diante da cena do corte, choca o outro e não facilita para ambos os lados. Algumas famílias resolvem fazer uma verdadeira perseguição ao problema. E, com isso, acabam por tornar a pessoa ainda mais vulnerável e suscetível a crises com intensidade maior. Outras famílias colocam a situação como algo desprezível, acham que é só para chamar atenção, se afastam e isso, também, só piora a situação.
É necessário encontrar um caminho de equilíbrio no tratamento. E, para tal, é imprescindível o trabalho psicológico com o paciente e seus familiares. Tudo o que não é necessário nesses casos é o excesso. Isso, eles já têm de sobra e, por isso, sangram. Muita atenção ou a falta desta só prejudica o andamento do tratamento. Portanto, casos de automutilação são cortes na alma e devem ser tratados por psicólogo e psiquiatra com apoio familiar. São pessoas que precisam de escuta especializada com urgência para falar das suas angústias e das suas dificuldades em lidar com situações da vida. Assim, poderão reorganizar sua relação consigo mesma, com seu corpo e com as pessoas a sua volta.
Priscila Almeida é psicóloga clínica especialista em saúde mental, psicanálise e em trânsito. Escritora e editora do Blog Papos de Psico.