A família de Anne até hoje não sabe o que lhe aconteceu na infância. Ela só contou para amigas próximas, anos depois, e agora à Folha. “Preferia que fosse por mensagem mesmo, se não se importar. Ainda não fico muito confortável em falar disso em voz alta”, escreveu ela à reportagem. Tinha 8 anos e vivia no Rio de Janeiro quando um tio inventou uma “brincadeira”. “Não podia contar nada para ninguém, se não perdia o jogo”, diz. Foi
abusada sexualmente. Aos 12, aconteceu de novo. “Um amigo da família me fazia sentar no colo dele e abusava de mim. Nessa época, já tinha um senso básico sobre esse assunto e saía correndo dele.” “Eu nunca delatei os dois homens que abusaram de mim, praticamente ninguém sabe disso”, diz.
Criança, menina, abusada em casa por algum parente ou conhecido. Anne compõe o perfil da maior parte das vítimas de violência sexual no país. E também faz parte de um outro grupo numeroso: os que sofreram a agressão mais de uma vez. Dados inéditos do Ministério da Saúde obtidos via Lei de Acesso à Informação e tabulados pela Folha mostram que, a cada dez crianças e adolescentes que são atendidos no serviço de saúde após sofrerem algum tipo de violência sexual, quatro já tinham sofrido esse tipo de agressão antes. Os dados são de 2018. Essa proporção pouco se altera quando comparada a anos anteriores, o que, segundo estudiosos, revela o caráter permanente do abuso infantil.
As informações levantadas pela reportagem são do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação). Toda vez que uma criança ou adolescente (até 19 anos) recebe atendimento em um serviço de saúde por ter sofrido algum tipo de agressão (física, sexual ou psicológica, entre outras), o estabelecimento é obrigado a notificar o caso às secretarias de saúde. O mesmo ocorre com qualquer vítima de violência sexual, independentemente da idade. Essas informações compõem o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA/SVS/MS), do Ministério da Saúde, e são usadas pelo governo federal para identificar epidemias. A pasta divide a violência sexual em cinco subcategorias: estupro, assédio sexual, pornografia infantil, exploração sexual e outros. O estupro consta na maior parte dos registros.
A base de dados mostra que uma a cada três pessoas vítimas de violência sexual é uma menina de 12 a 17 anos. Considerando meninos e meninas, a maior parte dos registros de violência sexual (72%), recorrentes ou não, aconteceu contra pessoas que tinham até 17 anos. Dentro desse universo, chama a atenção a violência sexual contra crianças de até 5 anos (18% das notificações) e de 6 a 11 anos (22% do total). Essas agressões ocorrem mais em casa (68%), e têm o pai (12%), o padrasto (12%) ou outra pessoa conhecida (26%) da criança como abusador. “O número de casos de estupro feito por aquela coisa do desconhecido malvado é muito baixo”, diz Itamar Gonçalves, da ONG Childhood Brasil.
Para Jeniffer Luiz, da Fundação Abrinq, esses casos são em “locais de difícil percepção, no ambiente mais íntimo. Por isso, é importante que as famílias saibam quais sinais podem despertar em crianças vítimas de violência sexual”. As crianças que sofreram abuso podem manifestar mudanças bruscas de comportamento, depressão e atitudes sexuais inadequadas, entre outros comportamentos. “É preciso trabalhar isso na escola. A criança tem que saber que seu corpo é um santuário. Que se alguém tocar, pode ter algo errado”, afirma.