”Violência contra a mulher é uma doença social”, alerta Major Denice Santiago, da Maria da Penha

Major da Polícia Militar, Denice Santiago. Foto: Divulgação

Da ideia de felicidade condicionada ao encontro do príncipe encantado até o imaginário social de que a mulher deve sempre perdoar. Questões complexas como estas, construídas ainda na infância, podem favorecer o crescimento da violência contra a mulher. É o que aponta a psicóloga e policial militar Major Denice Santiago, criadora da Ronda Maria da Penha – programa em atividade desde março de 2015.

Na entrevista a seguir, Major Denice destaca ainda o alcance das políticas protetivas da Ronda, as características do chamado ‘ciclo de violência’, além dos perfis das mulheres que mais sofrem agressão. Segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP), houve aumento de 24% na média mensal de agressões à mulher, entre os anos 2017 e 2018 – somente entre os casos denunciados através do 180.

Major Denice, quais são os fatores que costumam levar a mulher a suportar por um longo período um relacionamento violento?

Desde pequenas, nós ouvimos que a mulher só pode ter um só namorado, que tem que sentar de perna fechada, que não pode sair sozin, enquanto os meninos são libertos. Nós construímos um ‘ser mulher’ atrelado a conviver perdoando. Nos contos de fadas, na sua maioria, é sinalizado que nós precisamos ter um homem pra sermos salvas e protegidas. E o que é mais perverso, no final do conto seremos felizes para sempre só ao lado daquele homem. Então, se crescemos construindo uma imagem de que precisamos ser felizes para sempre com nosso príncipe encantado, quando a mulher encontra seu príncipe, ainda que ele vire um sapo depois, ela ainda vai acreditar que foi culpa dela a violência que sofreu. Ela vai perdoar esse homem, no que chamamos de ciclo da violência.

Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), quando a mulher rompe esse ciclo de violência, ela já sofreu, em média, sete agressões anteriores. Então, quando uma mulher chegar para nos dizer ‘meu marido me bateu’, nunca é a primeira vez e ela pode se movimentar para perdoar, e nós temos que respeitar isso. Nós só podemos fazer uma coisa: dar a essa alma humana o respeito. Nós, mulheres, fomos ensinadas a ceder e, às vezes, isso significa ceder a nossa dignidade, a nossa força e a nossa coragem.

Como identificar as características desse ciclo de violência que podem ser denunciadas desde a primeira ocorrência?

A Lei Maria da Penha criou só um crime novo, que é o descumprimento de medida protetiva. Fora isso, todos os crimes que estão no Código Penal são contemplados pela Lei. Então, se a mulher é caluniada, difamada, injuriada, ameaçada, sofre lesão corporal ou tentativa de homicídio, ela deve denunciar. Há quem diga que a denúncia destrói uma família. Não! Para mim, quando uma mulher denuncia, ela está, no mínimo, salvando duas vidas: a dela e a do autor da violência. Então, a denúncia é salvadora. A mulher não denuncia para ver processar o crime que sofreu, ela denuncia para salvar a sua vida. Nós precisamos saber identificar uma relacionamento abusivo desde o início. Se, no primeiro dia de namoro, a violência se manifestar, a gente tem que parar. Um conselho: ouça seu corpo, ele fala com você o tempo todo. Se chegar uma mensagem ou tocar o telefone e for o seu companheiro, caso aquilo lhe traga uma sensação que não seja de felicidade ou a mulher tenha que mentir sobre onde está, o que está usando etc, tem alguma coisa errada. Se o diálogo não for mais possível e outras violências já estiverem instaladas, o ideal é denunciar.

É possível traçar o perfil da mulher que mais sofre violência?

A violência doméstica contra a mulher é uma doença social. Ela atinge mulheres em todas as classes, etnias e religiões. Mas não podemos esquecer da interseccionalidade e das violências acumuladas às quais as mulheres estão sujeitas. Algumas mulheres de classe alta podem inventar uma viagem para Paris, o médico vai à casa dela, o advogado dela vai resolver tudo, nem na delegacia ela chega. Agora, uma mulher pobre ou de zona rural vai ter que sair de casa, ir à delegacia, ao departamento de polícia técnica, voltar para a delegacia e acompanhar o processo. Ela se sente humilhada desde a saída de casa. Há uma série de situações acumuladas que vão fazer com que a violência chegue na mulher pobre, negra, de zona rural de forma mais contundente e perversa. Porém, essa é uma doença que pode alcançar todas as mulheres. Nós, da Ronda Maria da Penha, atendemos mulheres de Alphaville, do Horto Florestal, do Calabetão, da Graça, do Cabula, de Brotas. Estamos em toda a cidade.

Ainda há casos de mulheres que, ao denunciarem, sentem-se constrangidas pela própria estrutura das unidades especializadas. Como alterar essa situação?

As Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs) são uma ferramenta importantíssima. O que temos hoje é uma evolução em políticas públicas com as DEAMs, fazendo atuações preventivas com essas mulheres. Porém, temos em vista que se trata de um crime cultural e mudar uma cultura não é tão fácil. Nós, policiais militares, não somos aliens. Nós trazemos também essas marcas, mas estamos fazendo um esforço para modificar esse quadro. E, no caso daquelas mulheres que foram atendidas e que achem que não foi correto, peço que busque denunciar a situação nas ouvidorias das instituições, para podermos melhorar nossos serviços.

Quais os impactos da Lei Maria da Penha, hoje, no processo de combate à violência contra a mulher?

Pra mim, a Lei Maria da Penha é um divisor de águas em nossa sociedade. No nosso país não existia violência doméstica, o que existia era ‘briga de marido e mulher’. A Lei vai dizer que isso que a gente chamou de ‘briga de marido e mulher’ é um crime. E, a partir daí, a sociedade tem se movimentado para enxergar a mulher de uma outra forma. Nós tivemos avanços significativos, como a Lei da Importunação Sexual. Tivemos o fortalecimento do feminismo e da mulher em relação a si própria. Consequentemente, houve esse exercício de mudança cultural, do respeito, da prática da sororidade, para a mulher entender que ela não está sozinha.

*Sob a supervisão da editora Thaís Seixas