Waldir e o golpe militar

Waldir Pires

Aos 87 anos, o ex-governador e agora vereador de Salvador Waldir Pires (PT) representa a memória viva da luta de uma geração contra o regime militar vivido no Brasil de 1° de abril de 1964 até 15 de março de 1985.

Quando o golpe aconteceu em 31 de março de 1964, Waldir, aos 37 anos, era um dos homens mais importantes do governo João Goulart. Nesta entrevista, ele fala dos 50 anos do golpe completados hoje e suas consequências para o País. “Nós estávamos, naquele período, vivendo uma expectativa otimista, na minha geração, sobretudo. Nós imaginávamos que dificilmente o Brasil recairia em um sistema de força de golpe de Estado”, conta.

Ex-governador da Bahia, ex-ministro de Estado, o admirado político relata detalhes de uma época, mas fala também de futuro. Nesta conversa, ele faz uma crítica ao PT e à proliferação, mas destaca também a responsabilidade de todos os cidadãos construírem uma sociedade e um País melhor, mais justo, com uma democracia mais plena e inclusiva.

Tribuna da Bahia – Estamos completando 50 anos do golpe militar e o senhor viveu muito de perto esse momento importante da história do país. Quando o senhor começou a sentir que a ditadura estava por vir no Brasil?
Waldir Pires – A ditadura, no Brasil, esteve sempre, vez por outra, entradas terríveis. Nós estávamos, naquele período, vivendo uma expectativa otimista, na minha geração, sobretudo. Nós imaginávamos que dificilmente o Brasil recairia em um sistema de força de golpe de Estado. Evidentemente que, em determinado instante, as coisas foram se acentuando e tornando clara uma posição majoritária da alta burguesia brasileira, dos controladores da imprensa. De outro lado, crescia muito uma expectativa das áreas populares na linguagem e no avanço que estava sendo conhecido no Brasil, que teve uma exclusão humana terrível e muito demorada. A República não corrigiu isso, inicialmente, e o Império foi um desastre. Ficamos 400 anos com escravatura, foi uma segregação gigantesca, de modo que, para a nossa geração a expectativa do golpe de Estado era remota. Isso se acentuou como algo tramado e organizado quando se deu a renúncia do Jânio Quadros. Ali, tudo ficou inequivocamente fragilizado. A eleição de Juscelino Kubistchek foi imediatamente posterior àquele quadro do suicídio de Getúlio Vargas, que tinha voltado e iniciado o seu processo de presidente da República eleito pelo povo, que foi uma eleição de força gigantesca. Havia as candidaturas dos partidos oficiais fortes, que eram a UDN e o PSD. Tinha, portanto, a candidatura do Eduardo Gomes e do Cristiano Machado, no PSD, e a candidatura que nasceu de improviso, mobilizada por áreas diversas e estimulada por uma entrevista que o jornalista Samuel Wainer, que instituiu a Última Hora, fez. Ele foi a Itu e fez uma longa entrevista com Getúlio Vargas. Wainer sentiu a possibilidade de que Getúlio considerasse, na hora de encerrar aquele exílio nacional em Itu, depois que deixa o governo em outubro de 1945, a possibilidade de ser candidato à Presidência da República. No fundo, quando a candidatura surge, Getúlio só tinha a estrutura do PTB, mas uma marca gigantesca na sociedade, sobretudo, com os trabalhadores e com os despossuídos. O Getúlio, depois de 1930, foi quem iniciou o processo de certa inclusão social brasileira, tanto na política de instituição da proteção ao trabalho quanto na absorção de todos os candidatos ao trabalho, que passaram a ter um estímulo enorme.

Tribuna – Qual foi o último pilar que ruiu antes do golpe se tornar realidade?
Waldir – O grande fato que significava a grande ameaça completa e depois a tentativa que a direita brasileira adotou de esconder isso foi quando Jânio Quadros se tornou presidente da República. Ele se elegeu e tomou posse. Jânio era brilhante, surpreendente em seu comportamento político, estava forte. Ao mesmo tempo em que ele dava grandes demonstrações de apreço a toda burguesia ortodoxa brasileira que votou com ele. Ele foi candidato da UDN. Nessa ocasião, quando o Jânio Quadros renuncia no auge da sua popularidade, depois do incidente com Carlos Lacerda, em que houve o episódio que ele mandou deixar na portaria do Palácio do Planalto as suas valises para ser hóspede do Palácio e Jânio teria dado a ordem para que ele não entrasse, que ele não passaria a noite para conversar com o presidente. Assim, mandou reservar um quarto para o Carlos Lacerda em um hotel. A partir daí houve um ruptura enorme entre os dois. Surpreendentemente, em agosto, numa solenidade pública de natureza militar, era dia do Exército, Jânio Quadros renuncia. Faz uma carta imitando o início da carta de Getúlio Vargas, quando ele dá um tiro no peito e morre, e sai. Houve uma declaração enorme de apoio dos ministros militares a ele, numa tentativa de retomar, mas como ele adotou o processo de encaminhar ao Congresso Nacional uma renúncia, a renúncia desenganadamente é ato unilateral, de forma que, para o Congresso Nacional, depois da renúncia não tem volta. Ele fez isso numa sexta-feira e a expectativa era que na sexta à tarde, quando o ministro da Justiça levasse ao Congresso Nacional essa renúncia, não tivessem mais deputados em Brasília, não haveria sessão e não ocorreu nada disso. A esse fato, Jânio Quadros renuncia e imediatamente surge a indagação de que o presidente da República é João Goulart, que estava no exterior cumprindo o mandato do Jânio Quadros, organizado por Jânio Quadros. Muita notícia, muita informação que se impõe como bem conceituada foi a de que Jânio organizou isso para essa hipótese. Ele renuncia e os três ministros militares, naquela ocasião era ainda o regime de ministro da Marinha, ministro do Exército e ministro da Aeronáutica, eram ministros de Estado comandando as suas respectivas armas. Eles dão uma declaração dizendo que o presidente da República não seria João Goulart e que se ele voltasse para o Brasil seria preso. No mesmo dia e no dia seguinte foi uma notícia generalizada, surpreendente e bruta.

Tribuna – Onde o senhor estava naquele momento em que toda a confusão do golpe aconteceu?
Waldir – Esse ainda não era o golpe, foi o primeiro sinal da dificuldade e o prenúncio de que ele viria. Naquela ocasião, o João Goulart era o vice-presidente da República de Juscelino Kubistchek. Ele foi candidato a vice-presidente com êxito muito grande. Cada cidadão tinha direito a dois votos para a chefia do governo, do Estado Nacional. Um era o voto para presidente e o outro para o vice, independentes. De forma que nessa eleição Juscelino Kubistchek se elege presidente da República e João Goulart se elege com meio milhão de votos à frente de Juscelino, portanto, bem mais votado do que Juscelino. Ele entrou forte e continuou servindo e atuando com uma relação muito boa com Juscelino. Neste dia, o João Goulart tem a notícia e ficou perplexo. No dia seguinte, já chega a ele o conhecimento de que os três ministros militares tinham vetado. Ele foi eleito presidente pelo voto direto, pela soberania popular e os três ministros militares asseguraram que não havia hipótese do João Goulart assumir. Ali, realmente, iniciou-se o processo de golpe de Estado, claro, manifesto, não executado ainda.

Tribuna – O que o senhor destaca de mais importante do início do golpe para a sua concretização efetiva?
Waldir – Nesse período eu estava na Câmara dos Deputados, eu era deputado federal. Nós estávamos apoiando a posição de luta do Rio Grande do Sul e o Brizola era o governador do Rio Grande naquela época. Ele levantou a opinião pública do estado, reforçando que o presidente da República foi eleito por voto popular. O Jânio Quadros tinha também um candidato a vice-presidente, um homem muito sério e bem julgado, que era o governador de Minas Gerais. Mas o João Goulart teve mais do que Jânio, quase um milhão de votos. Portanto, é uma presença na estrutura do poder nacional muito sólida, de respeitabilidade do corpo de cidadãos brasileiros. Nós, ali, sentimos que o golpe de Estado estava feito, só poderia impedir a posse do vice-presidente da República se houvesse o Golpe de Estado, e ali o golpe se instalou. Cresceu muito o movimento que Brizola iniciou: a luta da legalidade, manter a legalidade, e foi conquistando o país todo. Conquistou uma parte do 3º Exército. O comandante do 3º Exército, o General Machado Lopes, assumiu a responsabilidade de dizer que não era correto, que não cumpriria. Daí por diante foi uma força curiosa porque, no fundo, aquilo estimulou o crescimento do país de que se levasse a uma consequência imediata no conflito com a posição dos ministros militares, que tinham endurecido na questão. Em face desse endurecimento, se formulou em uma parte do Congresso Nacional vinculada à direita, com a UDN admitindo, não ostensivamente, mas admitindo, grande parte do resto da sociedade parlamentar admitindo também a ideia de instituir-se o Parlamentarismo no Brasil. Isso levaria, em face da crise nacional, os ministros militares a admitirem a posse de João Goulart, desde que fosse um presidente da República sem poderes. Então se formulou o projeto do Parlamentarismo no Brasil, votaram, institui-se o Parlamentarismo no Brasil e houve a concordância de que João Goulart tomaria posse, não como presidente como fora eleito nas condições do exercício de todos os poderes, mas como presidente do Parlamentarismo. João Goulart era um grande negociador e tinha capacidade de diálogo extraordinária, com visão política admirável. Pouco antes desse período, por exemplo, ele teve uma posição extremamente importante com Kennedy. A carta que ele fez a Kennedy foi uma linda carta, em que ele não admitia a invasão de Cuba pelos Estados Unidos porque o Brasil tinha o compromisso com a Organização dos Estados Americanos (OEA). Essa Organização está assentada no princípio da congregação e do fortalecimento da comunidade latino-americana e por isso não haveria possibilidade de se recusar à OEA, a capacidade de vetar, de impedir a invasão oficial dos Estados Unidos em Cuba.

Tribuna – Já que o senhor falou em Cuba, quem, efetivamente, estava por trás do golpe do Brasil?
Waldir – Os Estados Unidos, desenganadamente. Do primeiro ao último momento.

Tribuna – Qual o interesse deles, na visão do senhor?
Waldir – O mundo, naquele instante, parece que vivia um período neurotizado da Guerra Fria, que significava o poder dos que ganharam a guerra, excluindo a posição do aliado, que era a ex-União Soviética. Mas acontece que a luta do mundo, naquele momento, perdeu um dos homens mais admiráveis dos Estados Unidos, que era o Franklin Roosevelt, que era o presidente. Ele fazia um grande trabalho de meio de campo na composição das forças aliadas, que eram a Inglaterra, os Estados Unidos a França livre, que não tinha mais poder porque estava ocupada pelo Marechal Pétain. Todo o continente europeu já havia sido tomado pela Alemanha, pelo nazismo. Quando o Roosevelt morre, ele teve um substituto de qualidade secundária, muito medíocre, que foi o Trumman, que implantou uma linguagem diferente da de Roosevelt. Ao invés de tentar administrar as diferenças entre a União Soviética e o império inglês, Trumman fez o oposto.

Tribuna – Especificamente no episódio do golpe, como o senhor viveu esse período?
Waldir – Eu vivi, aí, uma fase pouco posterior a essa primeira que é quando se dá a primeira tentativa de dizer que o presidente João Goulart não assumiria o poder, em 1961. Como ele perde essa posição, o João Goulart, mesmo fazendo o enfrentamento com o Brizola e outras forças, ele admitiu a negociação. Ele disse que autorizaria Tancredo Neves a fazer as negociações necessárias para que pudesse tomar posse. João Goulart nomeia Tancredo como primeiro-ministro e a partir daí ele não era presidente da República com os poderes presidenciais. A partir daí os poderes presidenciais passaram para o primeiro-ministro, como em todo sistema parlamentarista. O Tancredo sempre foi muito leal, conversando e articulando tudo com o João Goulart. O golpe de Estado chega, então, na fase em que as coisas foram se acentuando. João Goulart era uma figura sem radicalismo e já tinha recuperado os poderes presidenciais em 1963, fato que é um dos episódios políticos mais brilhantes que temos porque ele assume com humildade e vai construindo. Em 1963 já está tão forte que ele consegue em áreas militares que o plebiscito seria a forma de devolver ao povo brasileiro a soberania, que é da natureza do presidencialismo. Se estabelece, então, o processo de plebiscito em 1963. João Goulart ganha essa eleição com 80% dos votos, vitória esmagadora, apesar de toda a pressão da impressa, da UDN, dos setores conservadores. Ele tinha aberto um diálogo com os setores avançados do capitalismo nacional para impedir a subserviência brasileira, na plena entrega de tudo e na inobservância da presença dos interesses econômicos brasileiros. João Goulart nomeia como ministro da Fazenda, com capacidade de conversar com os Estados Unidos, o Santiago Dantas. As coisas se radicalizaram e o João Goulart avançava, mas não a ponto de ter o beneplácito da simpatia completa das áreas mais radicais da esquerda, por exemplo. O Brizola fazia muitas resistências a ele, o Arraes algumas, mas o fato é que João Goulart avançava e organizou um projeto básico, do qual eu participei diretamente. Nesse intervalo, fui candidato a governador da Bahia com a presença de todo mundo. O velho PSD, que era o meu partido, e o PTB, que era o partido do João Goulart e queria a candidatura de Antônio Balbino, e a UDN tinha a liderança um pouco da direita, tinha outra candidatura. Inicialmente, essa candidatura foi com Josaphat Marinho, que era secretário da Fazenda do Getúlio Vargas, mas em determinado instante, os filhos do Juracy Magalhães, que era governador da Bahia, fizeram uma conspiração e tiraram a candidatura do Josaphat Marinho. Foi substituído por uma candidatura avulsa, de um prefeito com linguagem política municipalista simpática, que foi o Lomanto, que passa a ser o adversário das nossas posições. Nenhum dos grandes líderes do PSD quis assumir a responsabilidade de ser candidato a governador e começaram a dizer que o povo queria Waldir, e eu fui candidato a governador naquela ocasião. Tive um problema com o cardeal, era professor da Universidade Católica e um dia o cardeal mandou me chamar porque soube que os comunistas votavam em mim e eu tinha que fazer a recusa dos votos deles. Eu disse que não era comunista por não aceitar nenhum processo ditatorial, por não acreditar, no mundo de hoje e de sempre, que a força autoritária possa ser a força que organize a comunidade humana. Nós somos um governo laico, de modo que os votos dos comunistas são votos que eu respeito. O cardeal mandou fixar uma bula e mandou afixar em todas as igrejas da Bahia a determinação dos católicos não votarem em Waldir Pires. Inclusive, aconteceu com minha mãe, que estava se confessando em uma igreja e o padre disse: “A senhora não pode votar em Waldir Pires”. Ela ficou indignada, abriu a cortina e disse: “Eu sou a mãe de Waldir, meu filho nunca fui comunista, ele é muito decente”. Eu ganhei todas as urnas de Salvador, mas tive a redução dos votos em algumas áreas e isso não foi suficiente para cobrir a posição do governo.

Tribuna – Outro fato importante desse período foi o sumiço do Rubens Paiva, e o senhor foi um dos últimos a estar com ele. O que lhe arremete àquele momento?
Waldir – Ali foi um episódio extraordinário. No último momento, eu e Darci Ribeiro éramos os últimos membros do governo. Eu era consultor geral da República, que, hoje, é o mesmo advogado geral da União. Darci Ribeiro era o chefe da Casa Civil. Tínhamos ido levar o presidente para embarcar em um avião. Ele mudou de aeronave porque sabotaram as turbinas do avião que iria levá-lo. Para nosso juízo, esse avião era essencial porque as divulgações no sul e em São Paulo diziam que o presidente da República iria para o Rio Grande do Sul e que se ele passar na direção do Rio Grande nós vamos abater o avião. Vamos convidá-lo a descer e caso contrário, vamos abatê-lo. Nós nos mobilizamos para ver o jato que existia e o único era da Varig. Pediu-se esse jato, que era um Coronado, ainda não existia Boeing. O Jango chegou, entrou no avião, Tancredo estava lá, Afonso, Wilson, que depois acabou viajando com ele, e o Rubens, que era deputado federal, só entra nisso um tempo depois. Ocorre que o presidente sai do avião depois de mais de 30 ou 40 minutos. Lá no aeroporto estavam os comandantes militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica absolutamente fiéis ao presidente. Quando ele viajou, nós voltamos para o Palácio do Planalto. Quando chegamos ao Largo dos Ministérios, encontramos o Congresso aberto e iluminado. Como já era fim de sexta-feira para sábado, não deveria ter mais nenhuma reunião, mas eles fizeram e foi contrário a tudo que ficou acordado anteriormente. Eu fui para o Palácio do Planalto com Darci e ficamos lá até o último instante. Em determinado momento, chegou uma comunicação do comandante do 3º Exército para o presidente e ele só leu na tarde do dia 1º, que ele veio do Rio de Janeiro no dia 1º e foi para o Torto. Lá, ele decidiu ir para o Rio Grande do Sul e que o general Ladário Teles, comandante do 3º Exército, dizia ao presidente que não apoiava o golpe de Estado e que o 3º Exército vai resistir para manter a democracia brasileira e respeitar a Constituição do País. Então todos nós aconselhamos o presidente a ir. Ele foi, mandou Maria Tereza e o filho em outro avião para o sul. Quando nós voltamos, nos demos conta que a coisa estava gravíssima. Utilizamos a área do Teatro Nacional para reunir maciçamente jovens universitários, estudantes e trabalhadores. Mandamos fazer sopa para o pessoal esperar e tentar impedir o impeachment, que eles diziam que iriam fazer. O impeachment só começa depois de aprovado pela Câmara, presidido pelo Supremo Tribunal Federal, no Senado. Era na legislação anterior e é na atual. O processo de julgamento é feito depois da declaração de abertura de processo pela Câmara dos Deputados e o Senado é o cenário de julgamento. Portanto, não tinha como ser instantâneo e eles estavam pretendendo fazer o impeachment como deliberação sumária. Nós estávamos preparando essa gente toda para ocupar o cenário, mas já não tinha possibilidade porque os militares tinham ocupado todo o espaço da área dos ministérios, da Câmara dos Deputados e do Senado. Nessa ocasião, mais ou menos por volta da meia-noite, Doutel de Andrade, que era deputado e líder do governo na Câmara, chega correndo sem fôlego e diz que os militares iriam dar o golpe. “Eles vão dizer que o presidente fugiu, deixou a nação”. Eu disse, então, a ele para chamar Darci, coloquei o papel na máquina e datilografei. Foi coisa simples, sumária, sete ou oito linhas. Foi a última mensagem do Executivo. Na verdade, quem fez foi Darci porque eu não podia. “O presidente da República me incumbiu de comunicar que saiu de Brasília para ir para o Rio Grande do Sul em virtude da convocação do comandante do 3º Exército, que está solidário com a institucionalidade democrática do Brasil”. Doutel volta, sobe à Tribuna, lê o texto. Andrade dá o Golpe. Já era uma da manhã do dia 2 de abril. Quando Doutel acaba de ler, o Andrade percebeu a coisa e fez a declaração: declaro vaga a Presidência da República. O presidente da República deixou a nação acéfala e convoco o presidente da Câmara dos Deputados a assumir a chefia provisória do Poder Executivo. Está encerrada a sessão”. Saíram pelas costas do Congresso na direção da Praça dos Três Poderes, foram até o Supremo, pegaram o ministro presidente do Supremo Tribunal e vieram caminhando. Eu e Darci ficamos nas vidraças do Palácio do Planalto vendo a “onda” se aproximando. As Forças Armadas estavam organizadas para acolher. Nós saímos e resolvemos ir para o Rio Grande. Nessa hora, eu estava com o motorista e Darci com outro. Eu disse que iria passar em casa para dar um beijo em minha mulher e em meus cinco filhos. Marquei com Darci de nos encontramos em 20 minutos no aeroporto para irmos juntos. Estive com Iolanda, meus filhos estavam dormindo e disse: “Eu vou para o Rio Grande, minha filha. Depois dou notícia, não sei o que vai acontecer”. Então me toquei. Cheguei um minuto antes de Darci. Quando fui entrando na base aérea, um major foi chegando e disse: “Dr. Waldir, que loucura é essa o senhor aqui”? Quando ele acaba de dizer isso, Darci chega. E o major emendou: “Dr. Darci, não é possível, vocês estão presos já! Vão embora, saiam por aqui!” Cada um entrou em um carro, eu disse que não havia tempo para saber qualquer coisa, que nem sabia para aonde iria e que bateria na porta de algum amigo. Darci disse que iria fazer o mesmo e combinamos de nos vermos no dia seguinte. Conseguimos nos encontrar, o pessoal tinha marcado uma reunião para a noite, numa casa de uma senhora. Uns 20 senadores reuniram-se e lá estava o Rubens Paiva. O fato tinha sido consumado, o Mazzilli tinha tomado posse, mudando ministros, e nós participamos para saber o que faríamos. A decisão comum foi que eu e Darci iríamos para o Rio Grande porque o presidente estava sozinho lá. Ele tinha saído apenas com o chefe da Casa Militar, com um deputado federal de Pernambuco e um senador do Paraná que era o Amaury Silva. Isso ficou decidido e nós vamos continuar aqui nessa batalha. Rubens Paiva, que era uma pessoa extraordinária, um verdadeiro D’Artagnan, levantou a mão e disse que a logística era com ele. Falou que eu e Darci sairíamos na madrugada do outro dia para o Rio Grande e foi o que aconteceu. Lá pelas 3h horas da tarde, recebemos a comunicação de que Rubens passaria para me ver a partir de 2h da manhã, depois pegaríamos Darci. Rubens alugou um avião monomotor para eu e Darci viajarmos para o Rio Grande. Ele foi para o aeroporto, localizou a moita mais alta que tinha próxima da pista de decolagem. Esse avião pediria autorização de voo às 6h da manhã para ir para uma cidade qualquer de Goiás, mas na realidade, ele viria para o local onde nós estávamos, o local que o Rubens determinou. Ele disse para ficarmos atentos, deitados, e que quando ouvíssemos o barulho de um avião e fosse um avião pequeno, deveríamos correr e entrar na aeronave. Daí, o esquema de saída já estará com o piloto. E foi assim que aconteceu no dia 4 de abril. Decolamos e fomos para uma fazenda, que o Rubens também tinha articulado, na fronteira da Bolívia com Mato Grosso. Quando chegamos, o piloto disse que chegaria um avião com combustível para seguirmos viagem até São Borja, “porque vocês não podem ir direto para Porto Alegre”. Se chegássemos lá, seríamos presos imediatamente. Nosso contato para nos encontrarmos com Jango seriam os amigos dele em São Borja. Ficamos em um pasto esperando o outro avião que não chegou, que o piloto nos disse que deve ter ficado preso. Precisaríamos comprar combustível, mas naquele lugar não havia combustível de avião. O piloto nos disse que já tinha voado com gasolina comum de carro e caminhão e que, se nós não nos importássemos, poderíamos seguir viagem assim. Enchemos o tanque com octanagem razoável, mais duas latas de 20 litros, uma no colo de cada um de vocês e tocamos a viagem para São Borja. Mas nessa noite, sentados no campo com o rádio ligado, ouvimos a notícia de que o presidente João Goulart desceu no Uruguai e pediu asilo político. O caminho é o do exílio, não tem alternativa.

Tribuna – Durante o exílio, qual o momento mais difícil para o senhor?
Waldir – Na fase inicial, o exílio é uma expectativa de que você, na semana seguinte, pode voltar. Tudo quanto era notícia dava a impressão de que voltaríamos logo.

Tribuna – O senhor ficou quanto tempo no exílio?
Waldir – Seis anos. No Uruguai fiquei um ano e pouco porque em 1964 passamos com muita expectativa. Mas expectativa ingênua de poder voltar. Quando veio o AI 5, para mim, foi a notícia mais atroz. O AI 5 significava o endurecimento da ditadura e a partir daí uma consolidação de uma ditadura por 15, 20 anos. Eu tinha a coisa mais angustiante em mim que era perder nossos filhos. A minha mulher era extraordinária, tinha visão política e solidária completa, acompanhava tudo. Eles fizeram os nossos inquéritos, os nossos IPMs, mas esses IPMs foram arquivados pelo Supremo. Como pode ser ilícita a gestão de Waldir e Darci, membros de um governo democrático, quando resistem à implantação de uma ditadura militar. Então o Supremo mandou arquivar, não havia ilicitude. Foi uma fase, ainda, de certas hesitações, tanto que, logo depois do AI 5, eles puseram fora alguns dos principais ministros do Supremo. Botaram fora o Vitor Leal, o Hermes Lima, que é conterrâneo nosso, grande figura do mundo político e jurídico do Brasil. Para mim, foi uma angústia. Eu disse para a minha mulher que iria renovar o contrato com a universidade, mas iria fazer isso pela última vez, se ela estivesse de acordo, se não perderíamos nossos filhos. A coisa mais comum no exílio, sobretudo em um país como a França, é o sujeito chegar alegre em casa, dizendo que a anistia chegou lá e vamos voltar para casa. Os filhos, já com vinte e tantos anos, ficam alegres, mas quem volta são apenas os filhos e os pais não.

Tribuna – Da reconquista da democracia para os tempos de hoje, em que o país avançou de mais substancial nesse período?
Waldir – Eu tenho a impressão de que o país avançou no sentido de que recuperou a ideia da transformação da sociedade. De organizar uma sociedade em que o Brasil tivesse mais autonomia. A dependência do Brasil para com os Estados Unidos era uma coisa sórdida. É uma beleza a carta do João Goulart a Kennedy dizendo por que o Brasil não apoia a posição da invasão de Cuba. Foi o Brasil que impediu e daí, a constituição da ditadura generalizada na América Latina toda. O clima da Guerra Fria era neurótico e a posição americana era neurotizada completa, não tinha nada a ver com o processo democrático.

Tribuna – O senhor considera que a nossa democracia é plena, sólida e madura?
Waldir – Não. Nossa democracia não está plena, nem sólida e nem madura. É uma democracia em instalação frágil. É uma democracia em estado de construção. A democracia é aquela busca em seu conceito básico e surgiu centenas de anos antes de Cristo, no mundo grego. Nesse tempo, a democracia convivia com escravos. Não eram escravos de cor, mas, muitas vezes, sábios de todas as áreas comuns da Grécia Antiga, da Roma e etc. A democracia saiu, você entra posteriormente no Império Romano, vai para a Idade Média e leva mil anos sem dar um passo a nada.

Tribuna – O que precisamos fazer, hoje, para que essa democracia em construção se consolide?
Waldir – Cumprir o que é o conceito da democracia, que tem verbalidade exata, fácil, brilhante de um grande cidadão do mundo, o Lincoln. Ele faz a definição dizendo que esse é o caminho, depois de chegar com Roosevelt, Churchil e dizer que é preciso encontrar formas de aglutinar a humanidade e não ter os continentes repartidos com áreas dominadoras e o restante escravo. Quando não era escravo, era dependente e subordinado. Nessa fase, é preciso ter esse conceito básico. A democracia é a construção da inclusão no mundo, dos direitos do ser humano, da personalidade humana. Quem for espiritualista diz que é a obra-prima de Deus, quem não é diz que é a obra-prima do ser humano. Lincoln diz que a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo. Não pode ser para esse ou aquele, a serviço dessa ou daquela ideologia, é para as coisas que signifiquem que o ser humano está incorporado à sua comunidade ocupando a Terra. A democracia é essa aspiração, então ela tem ética. Interna. Eu sou favorável ao Estado democrático, instrumento da construção da democracia, porque, se não for instrumento, as coisas vão ser obtidas pelas coligações de forças absolutamente desinteressadas e privatizadas. O Brasil passa a ter energia quando o Estado assume, passa a ter petróleo quando o Estado assume, tem educação e saúde se o Estado assumir.

Tribuna- Fazendo um paralelo com o presente, qual a avaliação do governo Wagner, na visão do senhor? O PT conseguirá se manter no poder, com a possível vitória de Rui Costa?
Waldir – Eu tenho a impressão que sim. Tenho conversado pouco com o governador Wagner, mas acho que sim. Muitas coisas da expectativa da construção democrática, que foram base da construção do PT, estão desaparecendo.

Tribuna – O PT não é mais o mesmo?
Waldir – O PT tem muita gente boa, mas os seus compromissos foram diferenciados. Nós estamos vivendo uma fase de composição de partidos como se houvesse, permanentemente, uma associação de partidos. Daí termos trinta e tantos partidos organizados com o financiamento para essa organização. Essa proliferação de partidos é a negação da possibilidade de se organizar os conceitos da população, a confiança da população, uma ética de bem-estar da população e uma ética na utilização dos recursos públicos.

Tribuna – Depois de viver tudo isso que o senhor viveu e continua vivendo, qual o país que o pretende ver de agora em diante?
Waldir – O país que eu pretendo ver construindo a democracia. Foi para isso que fui candidato a vereador. Eu saí candidato a vereador para dizer tudo isso, sempre. Em qualquer lugar onde eu estiver, em qualquer lugar que me convidarem para dizer alguma coisa, eu vou dizer sempre isso, é o mais importante para mim. Nós somos importantes porque se nós contribuírmos, nós organizaremos e só o ser humano, só a juventude.

Tribuna – Cada um de nós é responsável pela construção do país que queremos ter…
Waldir – Com certeza. Cada um de nós. Eu digo isso com a minha experiência pessoal. Eu tinha 16 anos e os primeiros comícios da minha vida foram para o Brasil entrar na guerra para derrotar o nazismo, que era aquele conjunto de concepções arianas desiguais, contrárias à unificação do ser humano.

Tribuna – Esse conceito que o senhor espera viver está mais próximo da construção de uma democracia sólida?
Waldir – Não, não está, mas ele está mais viável porque a comunicação é enorme, apesar de termos uma comunicação muito dirigida pela natureza da organização econômica, das empresas que compõem a mídia, no Brasil. Eu creio, por exemplo, que, hoje, a extraordinária tecnologia da comunicação viabiliza isso e pode viabilizar muito mais do que no meu tempo. Eu não sou pessimista, sou otimista. Eu parto do princípio de que a humanidade inteira viveu sempre sob o regime da força e da violência desde que existe a sociedade humana com alguma qualificação de ascensão do ser humano. São seis mil anos se a gente quiser contar isso a partir da história escrita. A história escrita dá, efetivamente, a lição de que até aqui tudo foi na base da força. Todas as modificações conquistadas foram à base da força e pela organização dominadora desse ou daquele setor, segundo os processos econômicos ou religiosos. Nada se fez, ainda, sob a compreensão da solidariedade humana. Eu acho que isso não é fantasia, é a minha força íntima. Eu acho que nós podemos buscar uma humanidade que não permita essa coisa perigosa de hoje. Como outras civilizações foram derrubadas, nós estamos, hoje, se não formos capazes disso, estamos com o crescimento de conhecimento extraordinário, da ciência, da tecnologia. A capacidade de destruir a humanidade está ficando mais fácil, e isso depende da ética política, da civilização do ser humano. Todo ser humano deve poder viver, claro que uns com mais e outros com menos, depende da competência de cada um, do seu vigor de insistência.

Colaboraram: Fernanda Chagas, João Arthur Alves e Lilian Machado, da Tribuna.

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