Cadê a biografia de ACM?

Cláudio Pimentel é jornalista. Foto: Rede social

Descobri que o Centro de Convenções de Salvador tem outro nome: Centro de Convenções Antônio Carlos Magalhães. A identificação está lá, no interior do edifício, na base branca do mezanino, escrita em letras brancas, a qual pode passar despercebida para distraídos, como eu. Não deve ser novidade para ninguém, mas eu não sabia. Assim que entrei no local, pela manhã, não vi. Foi apenas à tarde, apreciando o ambiente e seu egocêntrico pé-direito, que notei a discreta homenagem ao “Cabeça Branca”. Estranhei. Em outros tempos, o título estaria cravado em todos os lados do prédio, até no do mar, para os peixes jamais esquecerem de quem se tratava: o político mais escorregadio do país. Um artista, talvez, no nível César Bórgia, inspiração de Maquiavel para verter o clássico ”O príncipe”.

O novo centro de convenções já começa com futrica histórica. Teria nascido de um arroubo rebelde de ACM Neto, então prefeito de Salvador, insatisfeito com a degradação do antigo centro e a decisão do governador em não mexer nele, pois havia prioridades sociais inadiáveis. Um defendia o pão; o outro, o circo. Neto, então, que sonhava em ser governador, mexeu os pauzinhos e conseguiu verbas para construir o duplo quadrilátero em formato de avião, na Boca do Rio. Prova do seu amor à Bahia, tão amada que era pelo avô, seu espelho. Que família amorosa! O equipamento seria um trunfo de campanha, mas não foi. Neto desistiu de concorrer. E a pandemia pôs o lugar de molho por dois anos. Castigo? Quem sabe? Agora, será a estrela da companhia.

Não sei o que há com famílias de políticos que criam ”faraoníces” para enaltecer antepassados. Brigam como cães e gatos, vivem aos tapas, mas homenageiam-se como trocam de roupas. Só Pedro Collor não terá o nome em algum lugar. Outros, porém, como Luiz Eduardo Magalhães, já tem o nome em todos. Uma overdose. Merecem? Não, mas o que fazer? Nem Tutancâmon ou Gengis Khan ou qualquer outro clã foram tão generosos com os seus, quanto os Magalhães. O fenômeno, entretanto, é, em parte, culpa nossa, que não avaliamos criticamente a importância dos espaços públicos e nem do dinheiro. Adoramos cultos à personalidade. Apenas pessoas celestiais, como artistas, escritores, pensadores, desportistas, talentos naturais, deveriam ser homenageadas. Elas acrescentam algo à vida.

É correto esclarecer que ACM não é o inventor da prática. Não, ele só deu intensidade. Antônio Carlos fez história construindo uma dinastia política sem igual: o Carlismo. Durante quase quatro décadas, foi hegemônica. A ditadura de 1964 teve papel decisivo no fenômeno. E ACM soube se articular com maestria no obscuro ambiente de exceção, galgando degraus importantes na hierarquia dos verdugos que comandaram o país até 1986. Ele próprio, tornando-se um. Entrou e saiu sem arranhões. Outros não conseguiram. Sabia ler o tempo.

Em ”A festa do bode” (2000), Mário Vargas Llosa tece os dias que antecederam o assassinato do ditador dominicano Rafael Trujillo, em 1961. Para dar a dimensão de seu poder, o livro traz uma passagem tragicômica: o ditador tinha o hábito de caminhar, pelas manhãs, no calçadão da praia, despachando com autoridades, políticos, empresários. Ao seu lado, seguiam os eficientes e fiéis. Atrás, ficavam aqueles que caíram em desgraça e esperavam perdão. O castigo poderia durar anos. Mas ninguém abdicava da caminhada. Poderia ser a morte.

O livro de Llosa ainda não havia sido escrito, quando um velho jornalista, hoje, talvez, acomodado numa fumegante caldeira no inferno, disse-me que o governador ACM estava maluco, com a nova mania de despachar com secretários durante a caminhada que fazia, por recomendações médicas, em Armação. Jamais o levei a sério. Era um fanfarrão. Mas, quando li o livro, lembrei-me do episódio. Será que ”Malvadeza” repetia Trujillo? Só sua biografia pode esclarecer. Há uma em confecção, muito aguardada. Vem das mãos de um ás do ofício. Permitirá conhecer mais sobre a ditadura e a personalidade ímpar de alguém que ia do amor ao ódio como o elevador Lacerda. Caro Fernando Moraes, cadê a biografia de ACM?

*Cláudio Pimentel é jornalista